Já todos ouvimos falar de racial profiling. É notório o excesso de zelo dos controladores de passaportes ou lá como se chamam os tipos que decidem quem é que entra num país (vivi muitos anos no espaço Schengen, não sei o que isso é). E um pequeno burocrata com um pouco de poder é mais perigoso que uma depilação brasileira com uma lâmina ferrugenta. Mas esta é a primeira vez que ouço falar de racismo literário ou aquilo a que poderíamos chamar memoriofobia:
Não li o livro, mas pelo que percebi o rapaz drogava-se, dava-se com meninas de má vida e depois foi ele mesmo um menino de má vida. Depois escreveu as suas memória, dando-lhes um encantador tom dandiesco e belle epoque. Parece louvável. Só que, pelos vistos, pode impedí-lo de fazer compras na Saks Fifth Avenue e de comer no Russian Tea Room - e, infelizmente, só uma dessas coisas é que se pode fazer online (passear no Central Park já se pode fazer online)
Este é o mais recente episódio na novela da memoriofobia. Nos últimos anos, os autores de memórias têm sido alvo de ferozes perseguições e estigmatizados socialmente. É certo que isso tem acontecido depois de venderem centenas de milhares de livros, mas ainda assim, é feio.
Augusten Burroughs retrata, em Correr com Tesouras, a sua adolescência, passada com o psiquiatra louco da mãe (a mãe «deu-o» ao psiquiatra, que tinha um certo hábito de adoptar crianças perdidas). É uma espécie de Mogli versão LSD. É claro que o psiquiatra e a família são mais loucos que qualquer louco; toda a gente está sempre encharcada em comprimidos, em relações disfuncionais e em aventuras sexuais predatórias. O livro é tão bom que, comentei com amigos, se lê como um romance. Na verdade, quando o li estranhei aquele «non-fiction» pespegado na contracapa. Depois de o livro vender uns milhões e os direitos para cinema estarem vendidos (belíssimo filme, realizado pelo senhor que nos trouxe Nip/Cut), a família do psiquiatra decidiu processar o autor, dizendo que se sentia difamada. Que, como se diz aqui pelos cafés sobre os jogos da bola, «não foi bem assim». Depois de um settlement de alguns milhões a favor da família, e de um final para o filme tão cor-de-rosa e falso como uma depilação brasileira feita em casa, não ocorreu a ninguém perguntar o óbvio: será que as memórias de um adolescente terão necessariamente de reflectir a verdade objectiva? Não será o valor da memória exactamente o de apresentar um ponto de vista único, efémero, localizado no tempo? Não será que a arte do memorialista consiste precisamente em recapturar essa visão específica de um período da vida?
Mas passou, de uma forma mais ou menos inofensiva, como a alergia à cera numa primeira depilação, e Augusten Burroughs continua a escrever e a vender bem. O próximo na mira, e esta mira foi bem mais pública, foi James Frey. O seu A Million Little Pieces descrevia a experiência de um alcoólico inveterado a desintoxicar-se. Um dos momentos mais marcantes do livro, daqueles que as pessoas contam umas às outras, perguntando «lestes aquela parte?», foi a descrição de uma ida ao dentista para uma desvitalização sem anestesia. Na altura James Frey já estava nos AA e não podia tomar qualquer forma de droga, incluindo novocaína. Desvitalizou o dente a frio para se manter limpo e sóbrio. Uau.
Afinal parece que não. Exagerou. Uma vez mais, não foi bem assim. Testemunhos vários sugeriram que ele tinha exagerado ou embelazdo alguns episódios. O trágico foi que, na altura em que se soube, ele já tinha ido à Oprah, chorado com a Oprah e sido abraçado pela Oprah. A Oprah dá poucos abraços e não gosta de os desperdiçar. Não foi a abraçar mentirosos que a senhora subiu na vida. Quando o gato saiu da mala, como dizem os ingleses, já o livro tinha vendido milhões. Depois de a Sr.ª Winfrey-Steadman ter mandado o James Frey voltar ao programa, admitir publicamente a mentira e pedir desculpa, a editora do livro fez uma coisa inaudita: retirou o livro de circulação e reembolsou os leitores que pediram o dinheiro de volta.
Foi então que eu fiquei preocupada, como quando se está a fazer uma depilação brasileira e se vê que a depiladora está há imenso tempo ao telefone, não faz tenções de desligar e a cera está a ficar picante. Devolver dinheiro aos leitores? Que raio de precedente era este? Com que base legal? Se isto começasse a pegar, iríamos ter as pessoas a devolver Os Maias porque acabava mal, A Sibila porque não se percebe metade, Cem Anos de Solidão porque tem demasiados personagens? Não, a razão era bem mais simples: A Million Little Pieces era uma memória, logo, não ficção. Na não ficção não se embeleza nem se exagera. Por isso o Stephen M. Hawking que tenha cuidado a usar metáforas, porque na não-ficção não há espaço senão para os factos.
O caso de James Frey foi bastante nótório porque o seu livro chegoua um público já abertamenter ávido de sensacionalismo. Isso tornou-se claro quando Frey se justificou dizendo que a editora o tinha pressionado para publicar o livro como memória (ele originalmente tinha pensado em transformar as memórias num romance) porque «vendia mais». O selo da «história verídica» lubrifica as vendas. A reality TV já não convence ninguém, mas aparentemente a reality literature ainda convence. Por alguma razão, os livros pulp dos anos 50, sobre histórias escandalosas de lésbicas, gays, travestis e depilações brasileiras, eram publicados como «histórias verídicas». Já não era o valor literário que estava em questão, mas a intensidade da sensação causada.
Com o misterioso JT Leroy, a história deu uma volta inesperada. Leroy escrevia ficção literária de qualidade. Os seus romances tinham, segundo se publicitava, uma inspiração autobiográfica. Eram sempre sobre adolescentes vítimas de maus tratos, forçados a prostituir-se com camionistas naqueles vilarejos pedidos no meio do nada atravessado por auto-estadas (donde, os camionistas) e tão sexualmente ambíguos que faziam a pantera cor-de-rosa parecer macho (ou fêmea). A sua obra ela elogiada pela crítica e por escritores mais que conceituados, e ia ser o próximo it boy da cena literária. Era tímido, andrógino, pelo que se via das poucas fotos disponíveis, só fazia entrevistas pelo telefone, e até o editor só o tinha visto uma vez.
Isso porque ele era Laura Albert, uma mulher de trinta anos muito, muito perturbada, que tinha inventado a persona de JT Leroy. Foi denunciada pelo namorado, cuja irmã, disfarçada com óculos oversize (que visionária!) e cabeleira loura, «posava» como JT Leroy nas poucas aparições públicas. Foi processada pela empresa que tinha comprado os direitos cinematográficos de um dos romances (o filme ia ser com Asia Argento e não lhes perdoo não terem ido em frente com o projecto!) e o julgamento foi, ao que parece, um interessante debate sobre a verosimilhança e o processo criativo. Guardo duas coisas deste processo: a tristeza que mostrava Laura Albert por todo este fuss - parecia uma criança a quem tinham morto o amigo imaginário, uma criatura tão indefesa e adorável quanto as suas próprias personagens; e o título de um dos seus livro, das coisas mais bonitas que já vi: The Heart Is Deceitful Above All Things.
Enquanto eu me ia preocupando com a possibilidade, que me parecia cada vez mais real, de exumarem Fernando Pessoa e o sentarem no banco dos réus por falta de pagamento de impostos da parte dos seus heterónimos (com o presente estado das coisas, não sei se a inexistência física dá isenção), aconteceu o mais recente caso: Margaret Seltzer, sob o pseudónimo de Margaret B. Jones, escreveu Love and Consequences, memórias da sua adolescência como gang-banger e traficante de droga numa zona perigosa de LA, onde vivia num lar de acolhimento. Desta vez, a revelação nem demorou uma semana, os livros nem chegaram a aquecer as bancas. Margaret Seltzer cresceu com os paizinhos numa zona confortável e burguesa de LA. Se usou bandanas, foi com laço à coelhinho, como boa betinha. A editora fez aquilo que, agora, é da praxe: retirou os livros do mercado.
A propósito de tudo isto, saiu uma charge engraçada no International Herald Tribune:
E lembrei-me de uma cena de O Detective Cantor, em que um psicanalista diz a um autor: «Li o seu livro. Está cheio de pistas.» E o autor responde: «É um livro. Está cheio de páginas.»
Platão dizia que não admitiria poetas na sua república, porque eram fabricantes de mentiras. Por isso há cerca de 8 000 anos que se sabe que os escritores são fingidores, mentirosos, fabricantes, fazedores. As intricâncias legais acerca da catalogaçãodos livros - ficção, não ficção, memória, história, ensaio, depilação brasileira, whatever - não nos devia fazer esquecer que tudo o que é escrito em ozalides, desde os dez mandamentos até ao Sei Lá, contém, como qualquer espelho, elementos de distorção.
Adorava que os juízes de todos estes casos de difamação, fraude e outras acusações absolutamente esticadas contra autores (de livros que o público e a crítica tanto louvavam), pronunciassem uma sentença de: «Get a life. and I don't mean in paperback.»
E depois os queixosos ficavam proibidos de fazer depilações brasileiras no Verão mas, numa exebição de sadismo judicial, eram obrigados a fazê-las no Inverno.
PS - A foto é daquela pessoa que não existe, JT Leroy.