domingo, 27 de dezembro de 2009

Diz que Chove Sempre em Lisboa


Há tempos ouvi - não sei se num livro, na televisão, num filme, no autocarro ou na conversa embriagada de dois desconhecidos -- que era um exercício interessante registar os primeiros pensamentos que se tem de manhã (ou não necessariamente de manhã), logo ao acordar, antes de se despertar completamente. 
O que pensei hoje ao acordar foi algo como o "e strano" da Traviatta. Acordei ao som de um cão a ladrar e com a luz cinzenta de um dia de chuva a entrar pela janela. Nada de invulgar, mas achei curioso que num país como Portugal, conhecido pelo "sea-sun-and-sand" e pelos maus-tratos a animais, chova tanto e se ouçam tantos cães a ladrar. É um daqueles jeitos de Portugal que são os estrangeiros que tanta vezes mais apanham. Por exemplo, nunca tinha reparado no quanto venta neste país até o ver mencionado como marca saudosa do país numa peça escrita por uma ex-pat americana .
Em sequência quase imediata lembrei-me dos títulos de dois livros. Sempre Llums a Lisboa, um romance de uma catalã, de que conheço apenas o título e a cativante capa (que é a rua do, ai, aquela que sobe dali quem vem da baixa e sobe para o largo das belas artes, ai, aquela que é muito íngreme e passa um eléctrico - que indicação tão precisa, não é? Bom, já vejo). Acho piada à paixão irresistível, como uma atracção quase astronómica, que os catalães têm por Lisboa. Os catalães são como traças e Lisboa um candeeiro. Eles são como coelhinhos e Lisboa uma pick-up de máximos ligados. O que é simpático, porque gosto muito de catalães e acho que é mais ou menos como um bom gin, nunca se tem demais em casa.
O título do outro livro é parecido e é quase uma expressão idiomática na minha vida: Era Lisboa e Chovia. O que eu invejo a simplicidade e elegância desta frase. O little black dress dos títulos. 
O que me fez lembrar uma coisa que já pensei muitas vezes: do privilégio que é crescer rodeado de livros. A mera presença física de livros tem uma influência pervasiva numa pessoa, mais ou menos como amianto tipográfico que, por uma osmose simples e não rareficada, faz entrar coisas bonitas e interessantes na cabeça das pessoas. No mínimo, ao estar rodeado de livros pode ser-se absolutamente superficial e parecer muito informado, até erudito, mas sempre interessante. Os livros são um acessório que faz pandan com tudo, sobretudo num país de comportamentos tão uniformes como Portugal, um país dominado por best-sellers onde, a dada altura, ume percentagem considerável da população está seguramente a ler um dos livros do top 5. Estar perto de livros permite-nos pelo menos parecer bem e ter algum tema de conversa - mesmo que não se faça ideia que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar, se alguém encontrou o símbolo perdido, se Caim sempre matou Abel, o que é que ela fez no dia em que o esqueceu, ou seja lá o que for que o Rodrigues dos Santos escreveu desta vez.
E mesmo que não seja só para impressionar, deambular por uma estante de livros é uma dasflaneries mais engraçadas que se pode fazer. Naqueles ramos de lombadas encontra-se muitas vezes uma poesia involuntária criada pelo pot-pourri de títulos, texturas e cores. Sobretudo em estado mais ou menos selvagem - livros aos molhos, aos baldes, à mão-cheia, às pilhas em escadas como nalguns alfarrabistas, ou escondidos em segunda fila numa estante, deitados por cima dos outros, ou ainda em carrinhos, como na foto (courtesy de MB) - pode surgir uma espécie de saborosa sopa de letras: rumo ao farol o longo adeus à sombra das jovens em flor o vasto mar de sargaço a mais longa viagem cruzada sem cruz como um ladrão na noite. E isto sem os abrir e sem fazer ideia de quem os escreveu ou qual é a história que contam.
Porque depois, quando se abre aquela porta... à frente de uma estante de livros, somos todos Alice naquele átrio ao fundo da toca do coelho, rodeada de portas e chaves e bolos mágicos. Algumas das pessoas que melhor conheci numa existiram fora do espaço entre capas e às vezes dou por mim a tentar lembrar-me de onde vi determinada coisa, e não foi, como pensava, a caminho do trabalho, mas no final do capítulo 17. 
Esta capacidade mágica que os livros têm de nos fazer perder no seu mundo foi a primeira indicação que tive de que os objectos podem ser mais do que aquilo que são, ou significar mais do que aquilo que indicam. Ou, dito de outra forma, que há portas em todo o lado. Os livros são portas, mas quem já ouviu um arquitecto falar incasavelmente sobre a importância de um arco ou um designer rodear, absorto, um candeeiro de cantos improváveis, ou um estudante de filosofia a fazer desenhos na areia para tentar perceber o pardoxo de Russell, sabe que pode haver portas em todo o lado. São infinitas as maneiras de ver o mundo, ainda que o mundo seja finito. E, para os dias de chuva que sempre parecem acontecer em Lisboa, haverá algo mais divertido do que isso?

sábado, 12 de dezembro de 2009

Há dias estive num lançamento que teve lugar algures entre 1945 e 1968.  Era o lançamento de um livro de gestão - de marketing, para ser mais precisa - por isso eu não ia propriamente à espera de Proust. Ainda assim fiquei algo sobressaltada ao ver a livraria cheia de "fatos" (embora nenhum fosse acima de Zara, e não garanto que debaixo de alguns não estivessem camisas de manga curta). A moda masculina é um mundo que não domino de todo, e tenho de admitir que compreendo perfeitamente os homens heterossexuais quando os meus amigos homossexuais me mostram duas camisas aparentemente exactamente iguais e me perguntam: "então, qual fica melhor?" Mas sei que, não podendo (geralmente) recorrer a sapatos, carteiras, pulseiras, anéis, brincos, clutches, botins, pregadeiras, chapéus, botas de salto, bóinas, ou pumps (isto tudo só para poder citar: "for God's sake, Patsy, even Amanda de bloody Cadenet could think of the word accessories"), deve ser inimaginavelmente mais difícil para os homens ficarem bonitos. Por isso mesmo, imagino que a escolha de camisas, gravatas e sapatos, para não falar do fato propriamente dito, seja determinante. O que torna ainda mais incompreensível a decisão consciente e deliberada de usar aquelas camisas brancas de... lycra, será?, sabem quais são, aquelas quasi-semi-transparentes com riscas tracejadas. Camisas do Lidl, chamemos-lhe. Sou fã da cadeia alemã, têm queijos e iogurtes e oh por amor de tudo o que é santo aproveitem agora para comprar os deliciosos doces de Natal que eles fazem - mas não comprem lá camisas. As pessoas que usam camisas do Lidl (ou do Continente, ou do Minipreço ou, o que neste contexto vai dar mais ou menos ao mesmo, da Zara) justificam-se normalmente citando a famosa história de Einstein só ter um modelo de roupa - tinha o armário cheio de um modelo da mesma roupa, para não perder tempo a decidir o que vestir. Faz sentido - para Einstein. Mas a não ser que a pessoa vá descobrir a Relatividade, não tem desculpa para vestir um fato de segunda.
Pela longa digressão pelo tema da moda masculina, os leitores deste site já terão ambos adivinhado que este lançamento (ah poir era, era o tema deste post!) não me deixou muito feliz. Voltemos à narrativa do mesmo:
Por entre uma selva de terilene e poliéster, com um constante burburinho de "Oh sôtor, como está sotôr, oh meu amigo, como está meu caro" a entontecer-me os ouvidos, fui falar com o autor e o apresentador do livro. Ambos gestores de topo, responsáveis por centenas de postos de trabalho e milhões de euros de investimentos. O tempo destes homens vale muito dinheiro. E passaram cerca de 15 minutos desse valioso tempo a discutir como, quando e onde cada um se sentava.
Não era neurocirurgia. Não era Física Quântica. Nem sequer era calcular o PIB. Era só decidir quantas cadeiras teriam de ser retiradas, sendo que os apresentadores eram 4 e o número de cadeiras presentemente colocadas era de 7. I kid you not.
Após algum tempo de assistir à ponderação do problema, percebi que tinha simplificado a questão. Havia de facto 7 cadeiras, mas apenas 3 delas eram cadeirões (sofás, poltronas, maples, coisas almofadadas, vá), sendo as restantes cadeiras desdobráveis. A questão era, portanto, a quem se deveria dar a primazia de se sentar nas cadeiras mais confortáveis. E que dificuldades poderia isso levantas a nível da gestão de egos e da engenharia de hierarquias. Eles estava a ponto de abrir o excel para fazer um spreadsheet disto quando eu fiz uso dos anos e anos de National Geographic aos Domingos de manhã: detectei um ligeirissimo traço de medo/ fraqueza/ fragilidade da parte do autor e ataquei: "Como não há mais cadeirões, o X (o autor) vai ter de se sentar numa das desdobráveis, sim?" (Formular uma ordem como uma pergunta é uma arma de persuasão muito eficaz: exemplo, o caso de Aníbal quando disse aos seus soldados: "E se fossemos subindo para os elefantes,. ok? Assim podíamos, sei lá, atravessar os Alpes, não era?"). 
Debateram a questão mais cinco minutos. Enquanto o faziam, eu própria debatia-me com a questão de tentar determinar quão difícil poderia ser, para dois MBAs, um deles de Harvard, dois profissionais com anos de experiência em várias empresas Forbes 500 (ou Forbes 1000, pelo menos), dois homens aparentemente capazes de navegar o feroz oceano da liderança de todo, quão difícil seria, pensava eu, para dois líderes de excelência como estes, simplesmente deixar a gravidade agir sobre os seus rabos? 
Finalmente, sentaram-se. Lição de vida: a gravidade acaba sempre por ganhar. Não garanto que não tenha sido a Mae West a dizer isto. Ou foi o Larry Flint?
Passado algum tempo tinhamos quatro gestores sentados, um público ansioso por ouví-los, um retroprojector a funcionar e só estavamos meia-hora atrasados. Ouro sobre azul.
A apresentação em si começou com o chorrilho de chavões que se espera de um gestor a fazer um discurso. Há alguns anos atrás, ainda os contava e organizava em categorias (chavões genéricos, como a repetição desnecessária da palavra "excelência", ou mais específicos, como o neo-anglicismo: "estratégia de visualizing", "competência de spotfinding", etc).


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Gripe Aaaargh


T menos 72 horas.
Sábado, 5 de Dezembro, 13:45, Monte Estoril, café: Peço um café e uma fatia de tarte de lima. A minha mãe, contrariando um hábito de 50 anos, pede um chá. Pergunto se se sente bem e ela responde que tem estado um pouco agoniada, facto que atribui a uma açorda de marisco.
21:00, em casa: recebo um telefonema da minha mãe a dizer que teve febre, foi à CUF e a mandaram fazer o teste da gripe A. Esta informação é FYI only.

T menos 24 horas.
Segunda-feira, 7 de Dezembro, 20:00, em casa: ao contrário de todas as previsões, de ausência de febre, dores musculares, alucinações psicadélicas ou qualquer outro sintoma que não seja uma ligeira indisposição potencialmente atribuível a uma açorda, confirma-se o diagnóstico da minha mãe: é gripe A. Receitam Tamaflu, antibióticos e repouso. E avisar as pessoas com quem tem estado em contacto frequente.

Ground Zero.
Terça-feira, 8 de Dezembro, 13:15, centro de atendimento permanente da CUF. Entro na sala de espera. Vários rostos meio-tapados por máscaras viram-se na minha direcção. Refilo "oh por amor de deus" um décibel mais alto que o necessário e falo com a recepcionista. Segue transcrição aproximada do diálogo.
"Boa tarde, queria fazer o teste da gripe A".
"O teste tem de ser prescrito por um médico".
"Ah, é que a minha mãe foi diagnosticada com a gripe ontem e como tenho estado em contacto com ela achei melhor fazer o teste."
"Hoje só temos um médico de serviço, isto está um bocadinho demorado."
Tenho pensamentos pouco caridosos acerca da pessoa de José de Mello e pergunto:
"Mas posso marcar uma consulta, ou esperar?"
"É por ordem de chegada e estão, ora deixa cá ver, um dois, três... sete pessoas à frente. Quer fazer a inscrição?"
"Sim, se faz favor."
Silêncio embaraçoso.
"E onde está a paciente?"
"Sou eu."
"Ah, pensei que era para a sua mãe."
Volto a insultar a memória de José de Mello, deixo os meus dados e vou sentar-me o mais longe possível dos mascarados. Que, de qualquer maneira, estão a olhar fixamente para um ecrã gigante que só transmite a SIC Notícias. Sem som.
13:30: Ponho os phones, ligo o walkman na Europa-Lisboa e saco da Vanity Fair. Já a li, mas guardei a peça sobre o Avedon e a década de 60 para um dia de chuva. Este é o dia de chuva.
13:45: Noto, com uma ponta de inquietação, que ainda não foi chamada uma única pessoa. Começo a fazer um cálculo aproximado do tempo que pode demorar e uma lista de sítios por perto aonde posso ir para matar tempo. Há um único sítio, e a grande atracção é ter uma loja de crocs e outra da Occitane en Provence. Pouco apelativo.
13:55: O artigo sobre Avedon refere um fotógrafo alemão que o influenciou, um tal August Sander. Faltam 3 páginas do artigo. Lembro-me que o meu telemóvel tem acesso à net e faço uma pesquisa por imagens de August Sander. Pelo que consigo ver em dimensões microscópicas, parece interessante.
14:30: Passa um rapaz de braço ao peito. Está naquela fase da puberdade em que ainda faz coisas de criança, como chorar baixinho por se ter magoado. Sinto uma pena tremenda do rapazinho que possivelmente acabou de partir o braço. O pai anda à volta dele, a pegar no casaco e a voltar a pousá-lo, claramente à procura de alguma coisa que fazer para ajudar o filho. É uma cena comovente.  Por volta das 15:40 esta família vai voltar a passar pela sala de espera, altura em que a minha compaixão se terá transformado num desejo irreprimível de partir um braço a cada restante membro da família.
14:35: O artigo do Avedon chega ao fim. Re-folheio o resto da revista. Este mês era particularmente boa e não me sobra nada para ler, a não ser as peças sobre compras, jóias, perfumes, sapatos, trinkets, etc, destinadas a ser precisamente folheadas e não lidas. Volto a perguntar a mim mesma se aqueles chocolates em forma de cães poderão ser encomendados desde os EUA, se terão retrievers de pêlo raso, e se valerão os US$ 28,00. Depois aplico mais ou menos as mesmas perguntas à coluna em forma de balão da Sony. Fantasiar com uma nova aparelhagem ocupa-me os restantes minutos das 14:00.
15:00: Também trouxe um livro, ou o que é que acham? Começo a ler. Cada frase tem de ser lida e relida devido a uma séria dificuldade em concentrar-me.
15:20: Reparo que algumas pessoas vão sendo chamadas e pergunto-me se será coincidência ou paranóia ou apenas uma distorção auditiva que todas tenham nomes muito, muito parecidos com o meu.
15:40: Ocorre-me que o teste da gripe A não é coberto pelo meu seguro e vou ter de pagar mais ou menos o equivalente a 15 maços de cigarros. Começo a ponderar opções potenciais: o centro de saúde está fechado, e de qualquer maneira o tempo de espera lá é o dobro. E esse é o tempo de espera para se poder ficar à espera: vai-se de manhã, espera-se para tirar uma senha, volta-se à tarde, espera-se para ver o médico. Às vezes acabam as senhas. Invejo Cuba.
15:45: A minha criança interior ameaça atirar-se ao chão interior e fazer uma birra interior por estar à seca há tanto tempo. Levanto-me e vou até à recepção. O recepcionista diz que tenho duas pessoas à frente. A criança interior acalma-se.
16:15: Sou chamada. Entro num cubículo onde me espera uma médica muito, muito queque. E que parece um bocadinho, mas só um bocadinho, a rainha Sofia. Explico-lhe a situação, fazendo algumas pausas para me lembrar da situação, porque duas horas de espera transformaram-me o cérebro em gelatina. A médica usa mais interjeições ("ufff", "aiii", "oh, isso então...") do que substantivos ou verbos. É uma comunicação algo truncada e temos um momento um pouco irmão Marx quando ela me pede que me deite na marquise quando o que quer dizer é que quer que me sente na marquise. "Ponha-se aí" tem a sua ambiguidade, concordarão.
16:25: A médica sabe duas coisas: 1), que o pin da Borboletas na Barriga que eu tenho ao peito é muito querido; 2) que eu devo fazer o teste da gripe A e não devo ir trabalhar até ter os resultados. 
16:27: Levam-me para uma sala de espera, vazia, para esperar pela técnica que me virá fazer o teste. A enfermeira que me conduz até à sala dá-me uma máscara. Não a visto. A enfermeira aconselha-me a vestí-la. Segue uma transcrição aproximada do diálogo.
"Mas estou sozinha aqui na sala." (pergunto-me a mim mesma: estarei? será que esta sala está cheia de fantasmas e é normalmente usada para testar capacidades mediúnicas?)
"Sim, mas é por causa dos profissionais de saúde."
"Então, quando eles (eles?) entrarem, ponho a máscara."
Deixo cair a máscara para trás da marquise assim que a enfermeira sai. Aconchego-me na mesma (marquise, não enfermeira) a ler o resto do livro que comecei na outra sala de espera.
16:47: Chega a técnica. Espeta-me um pauzinho, estilo lápis de manicure, nas amígdalas. Espeta outro pauzinho na minha narina direita, o que de faz imensas cócegas. Não consigo parar de rir enquanto agradeço à técnica e ela me informa que os resultados devem chegar no dia seguinte.
16:57: Depois de perguntar a alguns profissionais de saúde transeuntes se preciso de voltar a falar com a médica, se tenho de entregar alguns papéis a alguém ou se me posso ir embora (enquanto a minha criança interior me acusa de ser má mãe), volto ao cubículo da médica. Ela receita-me paracetamol e anti-inflamatórios (para fins lúdicos, aparentemente) e garante-me que já teve pacientes com tantas dores musculares que tinham de tomar "imensos" analgésicos. Assalta-me a suspeita de que a médica está na verdade a falar ao telefone, por auricular, e que nada do que disse até agora era de facto dirigido a mim.
16:58: a médica pergunta quando é que chegam os resultados. A cortina está meio aberta e entretanto aproxima-se do cubículo um outro profissional de saúde transeunte. Segue-se uma bizarra coreografia de mal-entendidos e quase-entendidos, que tentarei reproduzir.
Médica - Quando é que tem os resultados?
Eu - A técnica disse que chegavam amanhã.
Profissional de Saúde Transeunte - O quê, amanhã?
Eu - Sim, foi o que me pareceu que disse a sua colega.
Médica - Pareceu? Mas então não lhe perguntou?
Eu - Sim, ela disse...
Profissional, etc - Mas está mal, olhe que isto demora entre 24 e 48 horas, não é assim, não sei quem é que lhe disse isso mas...
Médica - Mas afinal o que é que se passa? Mas afinal quanto tempo é que leva? Mas final quem é que fez o teste?
Profissional, etc - Não deviam dizer às pessoas que é 24 horas quando pode demorar mais.
Eu - Se calhar eu é que ouvi mal...
Médica - Mas ouviu mal?
Profissional - Afinal, quando é que chegam os resultados do seu teste?
Por volta desta altura começo a balbuciar coisas sem nexo num tom ligeiramente agressivo, como uma testemunha incompetente num drama de tribunal de segunda categoria.
17:00 (aproximadamente): Saio do cubículo.
17:01: Pago na recepção e confirmo se têm o meu telemóvel para me ligarem com os resultados.
17:05: O recepcionista acaba de imprimir e carimbar todas as vias de todos os recibos.


Epílogo:
Não tenho gripe A. A minha mãe está melhor. 




segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Referendum my shiny culturally sensitive ass


Hoje de manhã ouvi uma notícia sobre minaretes.
Fiquei radiante. Sabem há quanto tempo, oh ambos os leitores deste blogue, é que espero por uma manchete, um soundbite, uma frasesinha de abertura de noticiário que contenha a palavra "minarete"? A brejeirice, como a flora intestinal, é muitas vezes descuidada, mas é igualmente indispensável para o bem-estar e a circulação geral das coisas. Ao ouvir a palavra "minarete" na rádio, tive a mesma sensação que tenho quando vejo benecol nas prateleiras do supermercado: bom, aqui estiquei-me um bocado na metáfora, mas vá, fiquei contente e a segunda-feira de ponte chuvosa  ficou um bocadinho mais soalheira ao pensar na quantidade de brejeirices que ia poder dizer ao longo do dia. 
Infelizmente, a notícia era bem mais nauseabunda do que imaginava, e não daquela forma agradável que algumas piadas de revista têm de quase nos fazer perder o almoço. 
Parece que os suíços, esse povo reservado, neutro e sem exército, conhecido mais pela sua banca discreta, as suas vacas púrpuras e os seus relógios descartáveis, têm um lado menos agradável. Não é que dois partidos de extrema-direita suíços propuseram levar a referendo público a proposta de proibir a construção de minaretes em mesquitas, na Suíça?
Se isto fosse uma revista, como ainda esperei que fosse - e que a exímia jornalista estivesse só a fazer um set-up particularmente longo para um punch-line um pouco obtuso - agora começava a tocar a banda e o cómico saía do palco a dançar, ou então desatava tudo a cantar o fado. Mas não era revista, era realidade.
Não é o que referendo foi para a frente?
E não é que os suíços - e sim, posso generalizar, porque foram 57%, contem-nos, cinquenta a sete por cento, deles - votaram pela proibição dos minaretes?
Sim, admito que aqui ainda ouvi um vago eco da Marina Mota a gritar, naquele stage whisper que ela tem que se ouve do Parque Mayer ao Campo Pequeno: "Pois, quem se lixa são as suíças!", seguido de um figurante de - sim, claro - suiças a dizer algo como "quais, estas?", mas não chegou.
Ah proibir a (caramba, isto não está fácil, mas é o verbo certo!) erecção de partes de edifícios de culto, é? Ah negar a liberdade de culto? Ah descriminar contra uma minoria religiosa? Ele é isso? Ah, tá bem, tá bonito. 
Como não sei o suficiente sobre a Suíça para os insultar de forma simultaneamente divertida e instrutiva, passei à segunda parte da questão: mas agora um referendo é a casa da mãe Joana? Entra lá quem quer, é? Referenda-se tudo? A consulta popular não é um quizz do Facebook, minha gente!  Isto não é o levanta-a-mão-se-preferes-pepsi, meus amigos. Como é que é sequer constitucional levar-se a referendo uma sugestão que é essencialmente anti-democrática? 
Se calhar estamos mesmo numa revista e eu é que estou distraída. Espero que sim.
E, pela enésima vez nos últimos oito anos, dei graças a Alah por não ser muçulmana. E pedi-Lhe desculpa por qualquer coisinha.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Uma Aventura no Ministério


A Isabel Alçada é ministra da educação, já viram? Estou chocada - e não só por ser das primeiras vezes que ouço o nome da Isabel Alçada sem ser precedido das palavras «de Ana Maria Magalhães e...». Não estão cheios de vontade agora de ter a Alice Vieira como ministra da cultura? E o Vasco Granja como ministro do trabalho e da solidariedade social? E o Quino como ministro da economia? E a Enyd Blyton como ministra do ambiente e do ordenamento do terrítório?


É a vantagem de se ter sido puto em meados dos anos 80 em Portugal, havia destes anacronismos.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A Superação do Almoço pela Análise Lógica do que Diz a Senhora do Lado


Num opúsculo chamado A Superação da Filosofia pela Análise Lógica da Linguagem, Gottlob Frege postula que toda a Filosofia, sobretudo a Ontologia, não passa de uma falácia lógica baseada numa substantização indevida de elementos essencialmente linguísticos. Dito de outra forma: a Ontologia está toda mal porque pensa que há coisas que não há. Segundo Frege, a Ontologia assenta toda ela no conceito de Ser, conceito esse que, não correspondendo a nada de verdadeiro e exeistente, não pode ser base de ciência alguma. A Filosofia, diz ele, basicamente, mais valia estar a estudar unicórnios ou o sexo dos anjos, em termos de resultados cientificamente viáveis e/ou práticos. Um exemplo que Frege dá da incorrecção do conceito de «ser»: quando se diz «está a chover», ninguém se lembra de perguntar «quem» ou «o que» é que está a chover. O estudo da ontologia é mais ou menos como fazer essa pergunta: presumir a existência de algo quando ela não... existe. Pois. A Ontologia, a sério, é uma tripe.

Ora, hoje ao almoço a senhora que estava sentada ao meu lado, que não era de Ontologia, acho que é da tesouraria, mesmo, refutou Frege e toda a escola da Filosofia Analítica de um só golpe. Ela disse:

«Hoje o tempo vai chover.»

E embrulha!

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Tive Dois Anos para Deixar Crescer Garras, Mãe: Encarnado-Selva!




Eu fí-lo, finalmente fí-lo! Que se lixe a modéstia e a discrição que se vá pôr num porco: pintei as unhas de encarnado! E não é um encarnado qualquer - um encarnado maçã-da-Bela-Adormecida, encarnado-Capuchinho-Vermelho, encarnado-ressaca-anos-80!


Não é que eu seja uma pessoa muito dada ao recato e ao pastel em geral. Antes pelo contrário. Desde que comecei a pintar as unhas (uma aventura recente) que me tenho deleitado com cores como o rosa-choque, o verde-pinheiro, o azul-elétrico, e o amarelo-Calipo já está na wish-list. Mas o encarnado era uma ponte longe demais. Porquê?


A explicação é simples e previsível: um trauma de infância. Quando eu e as minhas primas tinhamos aquela idade em que usavamos ganchos com brilhantes, ouvíamos Ministars (não se riam, seus bandalhos, vocês também ouviam!) e eramos capazes de nos vestir inteiramente de uma só cor (incluindo leggins de Inverno, aqueles de lã mais densos e grossos que um pudim, usados com botas - botins!), aquela idade mágica e quase proustiana em que o pandan nunca é demais e glitter nunca enjoa -- nessa idade, dizia, eu e as minhas primas tinhamos verniz. Não lembro como nem porquê, mas lembro-me que quase todas as crianças portuguesas da minha idade tinham acesso a coisas que hoje seriam consideradas inapropriadas ou até mesmo tóxicas, como tintas para os cabelos (das bonecas), vernizes e perfumes e batons (para nós, feitos clarmente de plástico radiocativo), pulseiras que pelavam e gomas de cores que indicavam claramente que estavamos a comer corante com açucar.


Sentadas à mesa da cozinha, eu e as minhas primas estavamos cuidadosamente a aplicar a 20ª camada de verniz quando a minha Tia Alice gritou, para choque e consternação de todas: «Mas vocês estão parvas? Que pirosas, parecem umas sopeiras! Já a tirar isso».


Ficamos demasiado atordoadas para sequer pensar em nos queixarmos. Na altura, embora isso fosse falado pelos crescidos da família e proximidades afectivas, não sabíamos que:

a) A Tia Alice se auto-medicava.

b) A Tia Alice bebia.

c) a) e b) concidiam frequentemente.

d) Uma mulher de quarenta anos que prefira estar com crianças quando há adultos por perto não é de confiança para muitas coisas, incluindo conselhos de moda.

e)Uma mulher adulta que tire algum prazer em questionar o fashion sense de crianças de 8 anos pode apresentar perturbações psiquiátricas.

f)A Tia Alice era uma cabra.


Alguns dos comentários de a) a f) foram expandidos e reiterados pelas nossas mães e amigas, quando nos viram a entrar na sala, mudas que nem ratos e de mãos vermelhas de tanto esfregar (e já não encarnadas de tanto verniz). Ainda nos tentaram convencer a não ser parvas e não ligar (porque é que as crianças passam a vida a ser admoestadas para não serem parvas? São crianças, não são ministros nem CEOs, podem ser parvas à vontade!), mas a verdade é que, nos 25 anos que se seguiram, continuei a não ser capaz de pintar as unhas de encarnado - embora tenha feito muitas outras coisas pindéricas e sopeirentas.


Mas hoje, aha!, acabou-se a tirania mental! Tome lá esta, Tia Alice, misture no seu martini e embrulhe!


sexta-feira, 24 de julho de 2009

Felicidades!


Minha querida Kassata, muitos p.'s pelo bolinho que tens no forno! Vai ser o doce mais doce...

terça-feira, 21 de julho de 2009

Mas qual?





Uma pergunta que assola frequentemente a mulher de hoje, nos seus raros momentos de descanso, é: “Como posso ser mais regular?”.  Depois, quando a mulher moderna já comeu fibras de manhã durante 14 dias e tem mais tempo para pensar, pergunta-se não poucas vezes: “Se eu tivera sido uma diva, que diva tivera eu sido?”. Uma que conjuga verbos correctamente? Não sei. Mas, para descobrir, basta fazer o teste que tão gentilmente lhe ofereço, a si, mulher ou homem moderna:

 



Quando vai até à varanda:

a)    Fuma um Vogue Slim, contempla languidamente o Central Park e pensa que pedaço de património da cidade vai salvar a seguir.

b)   Dirige-se à multidão embevecida que a espera com cartazes de louvor e gritos de admiração, mostra as jóias, faz gestos bem ensaiados e pede-lhe para não chorarem por si porque a verdade é que você nunca os deixou.

c)    Dirige-se à multidão enraivecida que leva a cabeça dos seus guardas em espigões e clama pelo seu sangue, e desarma-os momentaneamente com um gesto de inaudita elegância, antes de fugir pela vida.

d)   Acena ao longe, sorri, recebe os bouquets de rosas e prepara-se para as perguntas dos jornalistas.

 

O maior insulto da sua vida foi quando:

a)    Mataram o Bobby.

b)   Você confessou àquele almirante inglês que ficara chocada quando um atrevido na multidão lhe chamou “puta” (a si, não ao almirante) e ele respondeu: “mas é natural, minha senhora, eu há anos que não ponho os pés num navio e as pessoas ainda me chamam almirante.”

c)    Já perdeu a conta, mas a falta de empatia pela morte do Delfim foi marcante.

d)   Aquela ovação condescendente no último recital.

 

O seu maior embaraço ou trauma de família é:

a)    O pai, que caiu de bêbedo antes do seu casamento e nem a levou ao altar.

b)   Quem não tem família não tem embaraços. A minha família é o meu marido e o meu trabalho.

c)    A mãe, que nunca está satisfeita consigo.

d)   A mãe, que a tenta explorar desalmadamente e diz a quem quiser ouvir que você é uma ingrata.

 

Não sai de casa, nem sequer da cama, sem:

a)    Pérolas, três fiadas.

b)   Pérolas, ouro, prata, platina, chumbo, safiras, rubis, esmeraldas, casquinha, diamantes e o que mais couber.

c)    Pérolas, no cabelo, claro.

d)   Pérolas, uma fiada, e um anel do tamanho da cara.

 

O amor da sua vida é:

a)    Os filhos e os amigos.

b)   O meu marido.

c)    The one that got away.

d)   O amante que a abandonou.

 

O seu maior medo é:

a)    Oh, a mim há muito tempo que me tiraram o medo!

b)   A solidão, nem que seja por um segundo.

c)    Falhar, desiludir aqueles que acreditaram em mim.

d)   Falhar, desiludir-me a mim mesma.

 

O seu trabalho é:

a)    A sua vida, no sentido em que a sua profissão é ser quem é.

b)   Fazer tudo o que puder pelos outros, pelo meu marido, por um bem maior, pela minha causa, e nunca parar nem desistir.

c)    Muito complicado, vago, abrangente e não sei muito bem em que consiste.

d)   Um dom e uma maldição, que traz prazer aos outros e a mim, só alivio quando não falho.

  

No instante antes de morrer, pensa:

a)    Só mais um dia.

b)   Só mais uma vida inteira.

c)    Só mais um minuto.

d)   Nem mais um minuto.

 

Arrepende-se de:

a)    Nada. No fim, tudo acabou por ser necessário. Não podemos separar o bem do mal, e talvez nem tenhamos de o fazer.

b)   Não ter feito mais, não ter trabalhado mais, não ter amado mais.

c)    Nada. Fiz tudo o que podia quando o podia fazer, e sempre com a melhor das intenções. Para ter uma vida diferente, teria de ter sido outra pessoa.

d)   Em um só momento da vida, não ter dado tudo por tudo. Mas não sei em que momento o devia ter feito.

 

 

Faça lá a sua introspecçãozinha (agora com as fibras todas que tem comido até deve ser mais fácil) e responda. A solução vem no próximo post.



 

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Noçãolos


Estou sem palavras.
Sprachlos, até diria.
Para os um leitor deste blogue que não saiba, tenho andado a dar no alemão. Já há algum tempo, na verdade, mas ultimamente tem-se tornado mais grave. Saco revistas de moda alemãs de há dois anos do mull (caixote de lixo) da biblioteca -- o que sempre dá jeito para saber o que se vai usar em Lisboa daqui a dois anos --, levanto discos em alemão da mediateca (recomendo vivamente esta pequena Carla Bruni/Rommy Schnider wanabee, Anette Louisan), estou ler, muito langsam (devagar) um romance juvenil alemão e a fazer um curso intensivo de um mês antes de começar o próximo ano lectivo.
Intensivo. Isso devia ter-me posto de sobreaviso. Intensivo foi o que os alemães fizeram a Londres durante a Blietzkrieg (em português, dar cabo do canastro com bombas) e aos judeus da Europa.
Mas nada me preparou para o que experienciei na aula de hoje. Isto.
Sim, a ideia preconceituosa que as pessoas têm dos alemães é redutora: eficientes, frios, sistemáticos, organizados. E sim, deve ser difícil pertencer a um país cuja imediata associação é com o genocídio.
Mas isto... O que se pode dizer de um país onde há uma CANÇÃO que ajuda a DECORAR as conjugações dos VERBOS IRREGULARES?
Ocorreu-me - no sentido em que passou em rodapé na minha mente a cada interminável segundo da canção - uma única palavra, do nosso rico e não-declinado português:
FO-DA-SE!
E acreditem que ISTO, ouvido numa sala rodeada de portugueses a tentar desesperadamente não corar, não olhar uns para os outros e não rir, parece interminável.
E agora -- isto tem um lado The Ring -- tendo ouvido isto, caros leitores deste blogue, tentem lá não ficar a cantarolar verbos irregulares na terceira pessoa do singular do presente, pretérito e perfeito.
É, não é? Ah, pois é.


quarta-feira, 1 de julho de 2009

Medmoiselle!


Finalmente, aconteceu.
Eu sabia que este dia ia chegar, mas nada me preparou para isto.
Está uma pessoa tranquilamente a comprar tabaco. Pede uma pessoa para trocar dinheiro para a máquina de tabaco. Aproxima-se uma pessoa de trocos na mão da máquina de tabaco. Vê uma pessoa duas crianças de fato e gravata (sabe a pessoa que são crianças porque as mangas dos fatos dão-lhes até às falanges e têm as gravatas enfiadas dentro das camisas. E usam os óculos de sol como bandeletes o que, a sério, faz a pessoa pensar onde irá parar esta juventude).
E ouve a pessoa:
"Olha lá, deixa passar a senhora".
A SE-NHO-RA!
Se a pessoa estivesse vestida com as calças de ganga de domingo, que a pessoa já tem desde antes da queda do Muro de Berlim, e com a t-shirt de sábado (que tem mais manchas que o Muro de Berlim), e a carregar sacos de compras, vá, ainda se compreendia.
Mas vindo a pessoa fresquíssima e arranjadíssima de uma reunião (de trabalho, não dos AA), com um impecável vestido vintage (passe o oxímoro) e umas encantadoras melissas, pergunto:
A pessoa merece isto?
A pessoa não merece isto.
Tive de fazer um esforço considerável (nada recomendável, na minha idade) para não gritar que senhora devia ser a puta da mãe dele. Se não fosse pelo medo de ouvir algum comentário acerca das flutuações de humor típicas da menopausa, tinha desatado a chorar no ombro da colega com quem estava a tomar café. Tal como não sabe que as gravatas são para usar por cima, e não por dentro, das camisas, e os óculos para usar nos olhos e não no cabelo, esta criançada não distingue idades a partir dos 25 e aglomera-as todas na abrangente categoria de pessoas que não têm o cartão jovem (será que ainda há cartão jovem? Os jovens ainda usam cartão? Ainda se diz jovens?)
O que vale é que o New York Times, essa senhora ainda mais provecta na idade do que eu, me preparou para o inevitável com este delicioso artigo.
*suspiro* Pois é. Está na altura de me juntar à tribo das Coco Chanéis, das Mrs. Havisham, das Isabella Bowes (que era uma falsa velha, ou velha mais em espírito) e das Wally Simpsons-Windsors do mundo. Na verdade, uma das minhas ambições na vida sempre foi a de ser uma velha excêntrica. Imaginei algo como ir comprar o jornal de papagaio ao ombro, fazer-me de surda para turistas que me pedissem indicações, ensinar os netos a fazer cocktails, congestionar as ruas tentando ler cartazes de concertos a partir do meio do passeio e depois pedir aos transeuntes mais stressados que me explicassem como se pronuncia "ticketline", desenhar grafittis ordinários nos albuns de família, rir-me das conversas de desconhecidos em cafés e dizer num stage whisper "ora agora!" (por acaso isso já faço). Ou filiar-me no Bloco de Esquerda, não sei algo que me fizesse parecer alienada mas não o suficiente para ser internada.
Mas pensei que tinha mais tempo (famous last words). Não sabia que era para já, que ia ter de começar a ser uma velha excêntrica quando ainda sou mais nova que a Wally era quando fisgou o Duque de Windsor!
*suspiro redobrado*. Bem, acho que vou seguir a sugestão do Times. Vou vasculhar as minhas gavetas de roupa interior para encontrar umas meias que sirvam de acessórios para o cabelo, comprar umas camisetas às riscas para usar debaixo de camisas de flanela atadas num nó à cintura e caçar umas aves para usar penas como fashion statements. E comprar uns quilos de maquilhagem berrante.
Para Senhora, Senhora e Meia! 

PS - E não precisei de ir à Universidade da Terceira Idade para finalmente aprender a inserir links neste maldito blogger!

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mais Marley, menos Prozac


Para assinalar a catrefada de tempo que eu deixei passar sem escrever neste blogue, vou ser extemporânea.
Há dias vi o filme Marley e Eu (não, não foi em DVD, foi mesmo em cinema; vão ao dicionário ver "extemporânea"). Gosto muito do Owen Wilson, não suporto a Jennifer Aniston, mas adoro cães. A última vez que tinha visto a Jeniffer Aniston foi numa repetição do Friends, que não consigo achar piada nem fazendo-me cócegas com uma pena. Mas a última vez que vi o Owen Wilson antes do Marley foi no brilhante Darjeeling Express, cheio de ligaduras, pensos e conflitos interiores muito bem expressos num understatement de representação mais que louvável. E antes disso, numas fotos desfocadas do senhor a sair do hospital depois de uma tentativa de suicídio (ou, como os agentes de imprensa lhe chamam, "acidentes com gás num fogão eléctrico" ou "desventuras a fazer a barba nos pulsos"). O que serviu bastante para pôr o filme em contexto.
As coisas nem sempre parecem o que são e raramente são o que parecem. A imagem certa no contexto certo com a intenção certa pode ter um resultado tão trágico e infeliz como um soufflé que se deixou cozer demais. A comédia nem sempre tem os resultados cómicos desejados. O Will. E Coyote de certeza que acreditava, com todo o coração, que se pisasse aquele X no chão ou pusesse a pata na catapulta, não lhe acontecia nada, tal como não acontecera ao pápa-léguas segundos antes. Mas é preciso ter um coração de pedra para ver aquele focinho a descair sob a sombra da bigorna prestes a cair-lhe em cima e não ficar um pouco comovido. Um palhaço numa festa de anos de crianças é uma coisa muito divertida, até que reconhecemos o palhaço como o nosso orientador de tese de mestrado e nos lembramos que ele costumava ter as mãos a tremer quando dava aulas antes das 10 da manhã.  (Não, isto não é baseado num caso real... acho eu.) Isto para dizer que Marley e Eu é um dos filmes mais trágicos que já vi. Tão trágico que nem sequer chorei.
Talvez seja por causa do ar ainda totalmente despido de esperança no sentido da vida de Owen Wilson (ele às vezes tem ares da Vivien Leigh depois do Eléctrico Chamado Desejo. Passei grande parte do filme à espera que ele dissesse que sempre dependeu da bondade dos estranhos). Talvez seja por a Jeniffer Aniston manter, durante uma hora e meia, uma expressão mais cansada que um soldado americano a fazer a enésima ronda pelo mercado ao ar livre de Bagdade. Talvez seja por o cão morrer no fim e eu no fundo ser uma criança que nunca percebeu muito bem a necessidade narrativa de os cães morrerem no fim. Mas oh céus, que filme tão triste.
Owen Wilson é John Grogan um jornalista admitidamente medíocre que arranja um emprego a escrever crónicas sobre a vida local (um trabalho que ele despreza mas ainda assim considera acima das suas capacidades). É casado com uma mulher que o suporta menos mal e faz um suspiro profundo antes de lhe dizer seja o que for, incluindo "bom dia", e que é claramente mais dotada profissionalmente do que ele, mas que deixa de trabalhar assim que nasce o primeiro filho -- e ela não se importa nada com isso, a sério, é melhor assim, deixa estar ("suspiro"). O melhor -- e, ao que parece, único -- amigo é um repórter correspondente que passa metade do tempo em viagem e a outra metade a engatar raparigas bonitas, tonificadas e dispostas a tudo, e ainda arranja tempo para tomar café com ele e perguntar: "conta-me lá outra vez como é bom estar casado?". Os vizinhos, só os conhece quando um deles é assaltado à porta de casa e isso faz com que se decidam mudar para uma zona ainda mais queque, cara e isolada. 
Por isso, ele compra um cão. A razão oficial do cão é servir de "treino" para terem filhos. Mas, para quem sabe encontrar subtextos e tem alguma formação em psicanálise e/ou mitologia grega, o cão é uma compensação para um complexo de Peter Pan mal resolvido, um cheirinho de hedonismo pagão numa vida apertada em constrições cristãs, um pouco de eros numa existência completamente afogada em tanathos. Prova conclusiva disso? O cão caga onde quer.
Tenho admitir que sou uma dog person. Adoro cães. São fofos, leais, amantíssimos, engraçados, fofos, companheiros, honestos, fofos e atentos protectores. Mas como boa inimiga da ma fé, procuro sempre os potenciais motivos ocultos das coisas, e tenho de admitir: os cães são a perfeita compensação dos espíritos selvagens restritos pelas circunstâncias. A Emily Dickinson tinha um cão. A Elizabeth Barrett  Browning tinha um cão, cuja biografia foi escrita por Virginia Woolf, que também tinha um cão. A Emily Bronte tinha um cão. A Margarida Rebelo Pinto, por exemplo, não tem cães. Estão a ver onde quero chegar?
O que é que se faz com os cães? Passear e brincar. As duas actividades mais sãs e mais ansiadas pelo ser humano. Só que, ao contrário dos seus amigos bípedes, os cães estão-se, muitas vezes literalmente, a cagar: rosnam a quem não gostam, lambem as mãos a quem gostam, cheiram, pisam, esfregam-se e comem o que bem lhes apetece (quando o conseguem apanhar), correm atrás do que querem, saltam para onde querem, e raramente andam em linha recta. A natureza, dizia Hundertwasser, não tem linhas rectas. O coração humano tão-pouco, mas muitas vezes vivemos vidas desenhadas à régua.
Ok, antes que eu comece a falar como um instrutor de Ioga; estava a tentar ilustrar o papel do Marley na vida daquele jornalista frustrado, marido mal-amado, pai pouco capaz e escritor só por acidente famoso, John Grogan. Um dos fios narrativos do filme é (haha, trocadilho) a trela do cão. O Marley, como sabem todos aqueles que se dão ao trabalho de ler subtítulos, é o pior cão do mundo. Porta-se - de todas as maneiras possíveis - mal. Por isso, anda sempre de trela (vão passear para uma praia de cães mas se um cão se portar mal na praia é expulso dela) -- que passa grande parte do filme a partir para correr atrás desse Algo eternamente transcendente, efémero e simbólico (ou de um gato). Num momento perto do fim, Marley e o dono estão na praia. Estão a dias de mudar para outra cidade, onde o dono vai começar um novo trabalho (presumivelmente uma promoção, para a qual ele não se sente nem preparado, nem motivado, nem qualificado), levando consigo uma mulher algo reticente ("suspiro. Bom, queres mesmo este emprego, não é?") e uns filhos que estão entre o hiperactivo e o desordeiro. Num acto de transferência que faria com que Freud se engasgasse na bebida ou começasse a tossir insistentemente e a bater com a caneta no bloco de notas, o jornalista decide: what the hell. Este cão andou de trela a vida toda, preso enquanto via todos os outros a brincar e a correr. Ele merece um momento de liberdade. E solta o cão. Que, numa sequência mediocremente musicada, corre pela praia, saltita ao redor de outros cães, abana-se freneticamente... e depois, prontamente, caga à beira-mar.
Mais tarde, não se percebe se como consequência directa disto ou não, eles mandam abater o cão. A devota esposa, que foi dona do cão desde antes de ser mãe, fica em casa porque tem mais que fazer. Os miúdos, que têm um pai depressivo, uma mãe passiva-agressiva e vivem numa quinta isolada onde neva durante 9 meses por ano, têm inveja do cão ( e, um dia, virão a entrar pelo liceu adentro com caçadeiras, estou convencida). O homem vai despedir-se do seu fiel amigo e chora compungentemente ao testemunhar esta castração simbólica ritual. Depois escreve um livro que é publicado em toda a galáxia e o leva a ganhar biliões de carcanhol. O fim.

Sabem aquela cena de cinema quando o público não gosta de um filme e começa a atirar pipocas para o ecrã? Pois é. Eu fiquei com vontade atirar Prozac para o ecrã.

E chamam a isto comédia? Por favor. Para a próxima já sei: quando me quiser rir, vou ver o E Tudo o Vento Levou ou uma daquelas sitcoms do Bergman!

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Laisse Tomber les Filles (cele-la au moins)


Oh, Lindsay.
Lindsay, Lindsay, Lindsay, Lindsay, Lindsay.
Linds.
*suspiro*
Então não se estava mesmo a ver, rapariga? 
Uma DJ? A sério? Oh filha, isso via-se logo que ia acabar mal. Que a miúda só te ia dar baile. Que tu ias cair naquelas cantigas todas. Que seriam feitos um monte de trocadilhos foleiros - e isto só em português, nem imagino em outras línguas!
Se tens de começar a tua vid lésbica semi-out com um estereótipo gay, porque não uma tenista? Como a Dana, do L Word, que bem que ela ficava com a Alice, lembras-te? Se te lembras, há-des contar-me como é que foi que elas acabaram porque uma amiga gravou-me os DVDs mas havia uma data de episódios que estavam todos pixelizado e passei daquela altura em que a Dana e a Alice estavam a dançar um slow no Planet (e a Kit estava a voltar para a Tina, e a Jenny estava beber lexívia e a Shane estava fazer beicinho e a Helena estava pagar bebidas e sapatos Prada a toda a gente a Kit estava a dizer "Oh, sugar, don't do that, honey, please baby" a alguém, mas isso podia ser qualquer temporada) para aquela altura em que a Dana está a sair de casa da Alice e deixa-a em lágrimas (ooooh!) e entra no carro daquela sonsinha da ex-namorada. Mais um estereótipo gay, não é, Linds? Mas isso estás tu a aprender agora.
Seja como for, uma tenista ao menos tinha o corpinho tonificado. E dava-te bola. Pronto, acabaram-se os trocadilhos.
Linds, Linds, Linds. A tua mamã não te ensinou nada, para além de mostrar mais decote, tomar anfetaminas para conseguires ir à escola e fazer uma data de filmes da Disney e pôr sempre o pezinho para a frente para ficares melhor de perfil nas fotografias porque mesmo sem comer durante dias uma mulher pode sempre ficar a parecer gorda? Esta mãe tão extremosa que está agora a chular a tua maninha para viver desde que tu, sua filha ingrata, deixaste de render? Esta mãe que te passou pérolas como "a partir dos 30 a tua carreira acaba", "o teu pai deixou-nos porque tu és gorda e preguiçosa" e "eu dei-te cama e comida durante 3 anos, agora faz pela vida", não te ensinou a avaliar o carácter das pessoas? Parece mentira.
Minha querida (palmadinha na almofada para sinalizar "anda cá, senta aqui que vou contar-te uma coisa"), é verdade que a Samantha era um achado. Aquilo do cabelo oxigenado era um bocado camião-retro demais, mas a cena dos chapéus (fedoras!) tinha o seu estilo e a miúda tinha um certo charme. E aposto que tinha umas playlists bem boas, e se há uma coisa que as DJs percebem é de ritmo, o que é sempre bom. Mas, linda-fofa, tens de perceber que uma DJ que passa a vida na noite, a ser galada por tudo o que mexe, não é propriamente, digamos, relationship material. Por muito que tu andasses entre a Fshion Week de Nova Iorque e a pré-saison da Riviera para ir fazer de arm-candy enquanto a menina punha música, nunca ias ser o suficiente para ela. Não perceber, Lindsay? Uma DJ está sempre a ouvir a música seguinte e nunca a que está a tocar. 
Bem. Isto foi mesmo zen. Mas o que eu te quero dizer, Linds, é que tu foste a mulher que crashou o site da New Yorker com a tua """homenagem""" à Marilyn Monroe. És uma bad girl. Uma hot girl. Uma, sob muitos aspectos, pita, com a vida toda pela frente. E as pessoas de pele clara e sardas envelhecem super bem. Não precisas disto.
Não precisas de andar a fazer comentários foleiros no Facebook. Não precisas de ir tooodas as noites a casa da Sam tocar à porta e ficar a discutir aos berros até amanhecer, até a gaja arranjar uma ordem judicial que te proíbe de te aproximares dela. Não precisas de ser barrada - a sério, barrada! - de uma festa em que ela está a pôr música. Tu és a Li-Lo! Tu não tens de ser uma bunny boiler.
OK, admito que a faceta de perseguidora psicótica te fica encantadora, mas tens a sorte de quase tudo te ficar bem. Não sei, amor. Fica em casa a ver imensos episódios da Oprah. Ouve Gloria Gaynor, Whitney Houston, Céline Dion, KD Lang (oooh, não, too close!, nada muito butch nos primeiros tempos), The Man That Got Away pela Judy Garland. Vê imenso Sexo e a Cidade e o E Tudo o Vento Levou. Passa a cena final vezes e vezes sem conta até os vizinhos chamarem a polícia porque já não te podem ouvir sussurrar: "But I must think about it, I'll go crazy if I don't". Compra roupa foleira (ok, esse passo parece que já estás a dar).
E, mais importante que tudo: come litros de doces e hidratos de carbono. Sandes de tudo e mais alguma coisa, com muita manteiga, e baldes de gelado. A sério, miúda. Acredita em mim: mais Lindsay é melhor Lindsay.
E (isto perde um bocado em tradução): muita força.
Outra música gira para ouvires, a versão inglesa do título deste post, pela April March: 
www.youtube.com/watch?v=7NDsbEiCxXw

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Para os Lombares


Há duas coisas que eu sempre quis encontrar na vida e que nunca consegui: um bom corte de cabelo e uma boa aula de ginástica. Já lá estive perto, já encontrei cortes e aulas satisfatórios, divertidos, engraçados, mas bons, daqueles que se sabe que é para o resto da vida... não. Isto é, até agora.
A frustração capilar é capaz de se dever a um mero problema de comunicação. Se eu digo a um cabeleireiro, "quero uma coisa assim tipo Meg Ryan", fazem-me um corte à Figo; se digo "um assim do género da Amália", fazem-me um corte à Pauleta; se digo "escadeado, tipo Jennifer Aniston", fazem-me um corte à Beckham (David, não Victoria); e se digo que quero "curtinho, como a mulher do Beckham", fico a parecer o João Pinto. Pode ser alguma dívida kármica que eu tenha com o mundo do futebol, não sei, mas sai sempre um bocadinho ao lado da baliza, o corte de cabelo.
Agora, a ginástica... Acho que encontrei A aula.
Para perceberem bem o sucedido, oh ambos os leitores deste blogue, há que saber algo acerca de mim que é um pouco vergonhoso: eu sou O target publicitário. Eu compro qualquer balde de merda que tenha uma boa estratégia de marketing por trás (incluindo, por exemplo, usar a expressão "balde de merda" mais vezes do que seria necessário só porque aparecia naquela canção giríssima dos Ena Pá sobre um urso de pelúcia). Isso não é nada de mais, dirão ambos os leitores deste blogue. Toda a gente é mais ou menos receptiva às suegstões do marketing, dirá um; pois é, dirá o outro. Mas o meu defeito é apaixonar-me por campanhas de marketing mesmo sabendo que o produto é uma merda. Outro exemplo típico: se eu na altura tivesse disposable income, em vez de só uma semanada, teria gasto tudo em quantidades loucas de WC Pato, só porque amava de morte o anúncio com o patinho. Aliás, não era tanto o anúncio em si ser giro, ou o patinho ser fofo, mas só o facto de haver um PATO num ANÚNCIO. Parecia um admirável mundo novo. Aquilo deliciava-me.
Um efeito mais ou menos semelhante foi surtido (sim, sei que não há passiva deste verbo) quando alguém me disse que o Pilates tinha sido inventado na Alemanha após a Grande Guerra para ajudar à recuperação dos soldados feridos. Céus , o que me foram dizer. Em uns meros cinco segundos, o seguinte filme passou-me pela cabeça:

Karl Wilhelm Philip Heinrich Von Turm und Pilates nasceu em Viena em 1890, oriundo de uma família aristocrática com fortes tradições militares. Os pais eram de um pendor artístico e bastante liberais. Por exemplo, não eram nada anti-semitas, ao ponto de serem considerados, em alguns círculos sociais, uns desmancha-prazeres. Na verdade, o pai de Willi (como era chamado) tinha ficado revoltado com o caso Dreyfuss, e tinha chegado a escrever uma carta de protesto formal ao seu oficial comandante em defesa do Col. Dreyfuss, exigindo que o império Austro-Húngaro anexasse a França, ou pelo menos deixasse de beber vinho francês. A mãe de Willi disse-lhe para deixar de ser parvo e deixar a carta em paz que eles tinham uma recepção às oito e tinham de se vestir e que se despachasse mas era. O pai de Willi disse que estava bem, mas que então ia chamar Alfred ao próximo filho que tivessem (Fred, o irmão mais novo de Willi, que veio a ser um notório artista de cabaret com o nom de guerre "Mathilde").
Willi foi educado nas melhores academias militares (vão ao google ou ao wikipedia ver quais eram que eu não estou para tanto) e, quando estalou a Grande Guerra, foi dos primeiros a pôr os pés na Flandres. Motivava-o o mais puro e refinado sentido de dever (convém lembrar que o Dever era o MDMA do início do século) e uma vaga sensação de que alguém, de preferência alguém de inclinações imperiais, que soubesse tocar bem piano e tivesse lido Goethe e Kant de trás para a frente, pusesse "ordem neste chavascal" que era a Europa. É claro que o inferno das trincheiras transformou este jovem idealista numa sombra do que outrora fora. Ao testemunhar a humanidade no seu pior e mais vil, percebeu quão determinantes eram as condições materiais na formação do espírito, deu razão a Hegel em geral e a Schoppenhauer em particular, e fez de tudo, incluindo coisas que nunca se adequariam a qualquer formulação do imperativo categórico, para sobreviver e voltar a casa - a Viena, esse bastião da cultura e da civilização. Uns meses antes do armistício, o seu regimento foi bombardeado com gás mostarda na terra-de-ninguém. Willi e outro oficial foram os únicos sobreviventes.
No hospital, disseram-lhe que os efeitos daquele gás ainda não eram totalmente conhecidos e que se preparasse para não voltar a ter a mesma vida activa de antes. Nunca poderia voltar a andar de cavalo a trote nem a jogar gamão de forma entusiastica. Mas, pelo menos, estava são; o outro oficial do regimento passaria o resto da vida num asilo de loucos.
Regressou a Viena poucas semanas após o armistício e não reconheceu o mundo que o esperava e pelo qual tinha lutado. A cidade parecia-lhe repleta de sombras violentas que vagueavam pelas ruas sem destino. Willi passava os dias no quartel, a ler, evitando os outros oficias. Por vezes, ia com alguns amigos civis correr os cabarets e as tabernas da cidade. Uma vez, já muito bebido, caiu numa sarjeta e não se conseguia levantar. Pareceu-lhe que nunca tinha saído das malditas trincheiras.
Antes da guerra, tinha estado noivo de uma rapariga encantadora: Clara, uma rapariga de uma família da alta burguesia, bastante endinheirada, cujo espírito era em absoluto o de um artista. Como a sua homónima, tocava e compunha para piano, amava o bailado e o teatro, e acreditava que só através da expressão artística o espírito humano podia aspirar ascender aos planos mais elevados. Willi amava Clara de todo o coração, mas tinha deixado de lhe escrever pouco tempo após o início da guerra. Agora, justificava o seu afastamento da mulher amada dizendo que não a queria prender a um compromisso com um homem desfeito; a verdadeira razão, contudo, era outra. Willi não conseguia admitir a Clara que tinha deixado de acreditar que o espírito humano se pudesse elevar a um plano superiores - apenas era capaz de decaír a níveis cada vez mais baixos de bestialidade. As trincheiras, para ele, tinham destruído a possibilidade da arte.
Mas, como um pequeno Werther sartreiano, não conseguia obrigar-se a terminar formalmente o seu noivado. E Clara também nunca o tinha voltado a contactar. A família, que se mantinha em contacto com a dela, insinuava-lhe por vezes que ela estava pacientemente à espera dele. 
Um dia, o silêncio formal rompeu-se: Willi recebeu um convite para o baile de aniversário de casamento dos pais de Clara. Pareceu-lhe uma ironia da mais cruel: um baile? Ele, um deficiente, um doente pulmonar, que mal era capaz de subir um lance de escadas sem tossir como um tuberculoso, num baile cheio de jovens a vibrar de vitalidade e força? Talvez a ver Clara a dançar com um deles -- o novo noivo, o marido?
Nessa noite, Willi foi ver uma actuação do irmão. Mathilde queria falar com ele e pediu-lhe que fosse ao seu camarim depois do espectáculo. Num cubículo na cave, cheio de boas e sapatos Schiaparelli, Mathilde ralhou-lhe como só um irmão sabe: que não o compreendia, que se sentia orfã de irmão, que não o queria ver a desistir da vida, quando tantos jovens austríacos tinham morrido naquele lamaçal do inferno e ele, ele podia ainda caminhar por Viena de braço dado com a sua amada. Bastava querer. "Sabs, mein scahtz, ", disse, passando-lhe a mão pelo cabelo, "não é tão difícil como parece. É só deixar acontecer".
Mathilde saiu para receber uns admiradores e Willi ficou sentado no camarim, cabisbaixo, com um corpete elástico de Mathilde na mão. Suspirou. Fechou os olhos. Respirou fundo. Sentiu o ar a encher-lhe os pulmões feridos. Era como se fosse a primeira vez que respirava fundo desde 1914. Extasiado, esticou o corpete com ambas as mãos e expirou. Sentia-se renascido.
Nos dias seguintes, recuperou uns apontamentos de anatomia e física que tinha do liceu e mergulhou na leitura, uma vez mais. Improvisou exercícios com alguns elásticos e pesos rudimentares. Sentia-se vivo e cheio de energia.
Passadas algumas semanas, os pais de Clara celebravam o seu aniversário de casamento com um baile. Clara estava ao seu lado a receber os convidados, à porta. Lentamente, um vulto aproximou-se, de longe. Era um oficial. Subiu as escadas pausadamente, degrau a degrau, e chegou ao topo da longa escadaria sem arquejar, com uma respiração perfeita e fluída. Clara caminhou suavamente até ele e disse:
"Willi. Eu sabia que vinhas"

Estão a ver? Se calhar não foi nada assim, mas só a ideia...

Seja como for, são uns exercícios muito fixes e sabe maravilhas.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Vigília Pascal


O Buda ensinou que as posses humanas são efémeras.

Sim, mas as necessidades humanas são, para além de efémeras, ridículas.

Sei que há uma piada latente nesta imagem, mas não consigo chegar até ela. Sugiram, oh ambos os leitores deste blogue!

terça-feira, 3 de março de 2009

Stalag


No meu ginásio, somos medidas, pesadas e analisam-nos a massa corporal todos os meses.

 Depois, fazem uma média de pontos por matéria gorda, quilos e centímetros perdidos. 

As que têm mis de 20 pontos ganham uma maçã encarnada, as que têm mais de 15 ganham uma azul, as que têm mais de 10 ganham uma amarela, as que têm mais de 5 ganham uma azul, e as que têm até cinco ganham uma verde. 

Depois de cada análise, os resultados são anunciados à turma toda com uma salva de palmas e cola-se as maçãs num placard.

"O que é que acontece às meninas que não ganham pontos?"

Não sei.

Nunca mais as voltamos a ver.

Socialismo


(Interior, fim de tarde, o meu ginásio. Equipamentos de exercício sob uma luz suave. Música electrónica por toda a sala. Um grupo de mulheres faz treino aeróbico e musculação. Uma delas, MARIA, uma rapariga pálida de olhos azuis, que eu pensava que era de Leste, mostrando assim não ser completamente despovida de preconceitos raciais, olha distraidamente para o lado enquanto exercita os bíceps. A INSTRUTORA, aquela que é muito simpática e queque, e nos pergunta sempre o que fizemos no fim-de-semana e se temos visto alguns filmes giros, repreende-a:)
INSTRUTORA: Maria! A'tão, tá a pensar em quê? Concentre-se, vá força nas máquinas!
MARIA: Tava a pensar na Ilene.
INSTRUTORA: Ela está no Brasil, não é?
MARIA: Não, já voltou.
MULHER A FAZER AGACHAMENTOS: Ela veio na semana passada aos abdominais, não foi?
MARIA: E eu vi-a ontem.
INSTRUTORO: Ontem? Ontem foi Domingo, querida!
MARIA: Eu sei. Chamei uma manicure lá a casa e veio ela. Fez uma pedicure à minha mãe e depois arranjou-me as unhas.
(Desce cortina)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Bill and Steve, not Adam and Eve


Isto porque: estava há tempos a discutir - não era bem uma discussão, era um animado câmbio de pontos de vista concordantes; estava a concordar com veemência, pronto - com um amigo acerca do ultrajante peso da direita católica na oposição ao casamento gay, e lembrei-me deste anti-slogan, cujo sentido é mais ou menos este: o que é preciso, em qualquer tempo mas sobretudo neste de crise, é empreendedorismo sem qualquer interferência na vida privada dos cidadãos, num estado que garanta a todos plenos direitos. E mais uma data de coisas foram ditas, mas, para parafrasear e ao mesmo tempo pedir desculpa a Martin Lutrher King, estou farta de lutar por algo que me pertence por direito, por isso não vou falar do casamento gay nem de todas as coisas brilhantes que eu e este meu amigo dissemos a respeito. Fica só o slogan.

Que vem a propósito de, também: uma instância de como às vezes temos de lutar por aquilo que nos pertence por direito, ou, dito de outra forma, há cada vez mais gente com uma grande lata. Há dias fui com a minha mãe à Perfumes e Companhia porque queria comprar um esfoliante da Clinique. Estou a citar as marcas todas na esperança de as envergonhar um bocadinho. A menina que lá trabalhava explicou-me como tratar das minhas necessidades básicas de hidratação (o que dava uma belíssima fala para um filme porno, mas não foi o caso) e depois incitou-me, incentivou-me, evangelizou-me a usar um determinado hidratante. Quando peguei no frasco do mesmo, ela suspirou e disse: "Pronto. E agora, os olhos?" Por momentos pensei que fosse uma referência edipiana obscura, por isso perguntei qualquer coisa como "quais olhos?". Os meus, explicou ela, o que é que eu fazia por eles? Enchê-los de boa televisão, bom cinema e literatura, aparentemente, não chega. Havia que cuidar do chamado "contorno dos olhos" (cuidar do contorno do olho também era uma boa fala para um filme porno). Disse-lhe educadamente que não queria mais creme, obrigada. Estava a conter-me, na verdade, porque sou da opinião que a imposição de cosméticos, com base na infusão de uma profunda insegurança, ao sexo feminino, através dos media e da publiciudade, en masse, é um dos motores da economia mundial, e que nunca haverá uma verdadeira crise financeira enquanto as mulheres, que ainda ganham, em média, menos que o homens, gastarem grande parte do seu rendimento em cremes manufacturados para melhorar defeitos imaginários em partes do corpo anatomicamente irrelevantes, a não ser que se esteja sob a luz crua dos holofotes de um cover shoot da Vogue, o que, admitamos, acontece a poucas de nós. Para não usar todos estes advérbios com a menina, que me parecia algo impaciente, fui só repetindo um educado "ah não, deixe lá estar", o que pareceu enfurecê-la ainda mais. A sua insistência foi fazendo um crescendo digno de Brahms, até culminar num arrasador: "é que se não fizer nada, daqui a uns anos está como ela", apontando para a minha mãe.

Ora, a minha mãe é uma aficcionada de programas de vida selvagem, e tem um conhecimento enciclopédico de formas de matar, esfolar, mutilar, devorar, encastrar, estropiar, caçar e em geral causar o fim da vida por predação. E também o sabe aplicar à vida mais selvagem que ocorre fora das savanas, oceanos e florestas. Mas neste momento preferiu usar a estratégia consagrada por alguns predadores mais selectivos: fingir que não ouviu. Eu, que ainda não "acabei como ela", fui menos esperta, e ouvi.

Admito-o: não sei muito de marketing e desconheço se a eficácia da fórmula "insulte a mãe do cliente" tem mesmo contrapartidas comerciais eficazes. Estou a lembrar-me, por exemplo, da famosa campanha "beba Coca-Cola, seu filho da puta", e da sua rival, "a puta da tua mãe bebe Coca-Cola; pede Pepsi". E quem não se lembra do nosso nostálgico: "tal como a tua mãe roda lá pela rua, a pasta medicinal Couto anda na boca de toda a gente". Mas não sei, comigo não resultou. Saí e levei só o esfoliante original, o que já foi uma vitória parcial para a sociedade patriarcal. Mas fiquei a pensar.

A lata em geral não devia prescrever. Lembrei-me, nas horas e dias imediatamente a seguir, de inúmeras respostas satíricas e devastadoras. Serei privada da satisfação que me dariam só por o timing não estar do meu lado? Devia-me ser permitido, por exemplo, seguir esta menina na rua e lançar-lhe farpas em resposta à pergunta que me fez, começando pelo mais pobre "e a alternativa é acabar como a menina, com os olhos maquilhados como se fosse um guaxinim?" e indo até ao sofisticado, se bem que hermético, "sabe qual é a vitória de uma gata em telhado de zinco quente?" (que ficaria bem seguido de um belo bitch-slap).

Enfim, isto para dizer que o senhor da fotografia é o Harvey Milk, não o Zero Mostel, e que às vezes é difícil manter a boa disposição quando se está a lutar por algo que nos pertence por direito.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009


Diz que há um bispo. Ou entidade eclesiástica de destaque. Foi aos media ou assim. Não sei, ouvi no carro (foi no rádio, não tinha um bispo no carro) e era de manhã e depois tive imenso trabalho. Normalmente, vocês sabem, oh 3 leitores, que eu até gosto de apresentar os factos todos, mas não me obriguem a ir verificar ipsis verbis o que ele disse. O que foi reportado foi que o Bispo ou assim disse, anunciou, ex catedra e publicamente, bem alto e para quem quiser ouvir, que a homossexualidade não é normal.
E pimba. Eu sabia, eu sabia! Ainda não vi o Dúvida - por falar em qual, acho que Hollywood anda a espiar as minhas fantasias secretas, porque puseram finalmente a Meryll Streep a fazer de freira má; se um dia fizerem um remake do 8 Mulheres com a Lindsay Lohan e a Deborah Cristal, fica confirmada a teoria - bom, ainda não vi o Dúvida, mas há tempos que suspeitava do seguinte: aquilo do Concílio Vaticano II era verniz que ia estalar. Ah, pois é, bebé. Ou pensavas o quê? Ecumenismo, ecumenismo, há muitas moradas na casa do meu Pai (vá lá, leiam a Bíblia!) e isso tudo, mas a Salvação é a Salvação, a Danação é a Danação, Pecado é Pecado e Igreja é Igreja. 
Primeiro, foram aqueles Padres da congregação não-sei-de-quê que negaram o Holocausto. Depois, foi um outro Padre (cujo sobrenome - juro, que nesse dia estava a ouvir o rádio com atenção - é Abramovich! Oy Vey!) que tentou desculpar os revisionistas anti-semitas dizendo que aquelas câmaras não eram bem de gás, eram mais de banho e desinfecção, e que também ninguém ligava tanto ao Holocausto se não fosse pelo facto de os judeus mais ou menos assim como que controlarem os média mundiais.
Depois foi o meu até-então-bem-querido-e-fumador-em-série Catedral Patriarca a dizer que o casamento de cristãs com muçulmanos era "um monte de sarilhos". Tem piada, mas não tem, porque na semana a seguir a revista Sábado publicou uma """""reportagem"""" (o excesso de aspas é para denotar que questiono a seriedade da mesma, duh!) sobre os horrores que certas pobres cristãs tinham sofrido às mãos dos maridos muçulmanos.
E antes disso tinha sido esta reportagem muito gira que li no NY Times
www.nytimes.com/2009/01/11/magazine/11punk-t.html?_r=1&emc=eta1
sobre neo-calvinismo. Apetece-me escrever imenso acerca deste conceito, mas fica para depois. Por enquanto, convém só que conste que, embora existam muitas coisas boas acerca das quais ser neo ou apreciar em tom retro - a estética da propaganda comunista, a música disco, as patilhas em homens (e algumas mulheres), as calças de ganga deslavadas - uma doutrina religiosa que afirme a salvação pela Graça Divina com exclusão da acção humana parece-me... uhm... perigosa? Sobretudo quando a dita é acompanhada de música fixe e atrai uma população heterogénea de almas perdidas.
Não é para ser alarmista, mas... mais ninguém está a ver, tipo, Munique 1923? (Vá lá, vão à Wikipedia!)
Quando se começa a ouvir vagamente no rádio comentários anti-semitas, racistas e homofóbicos, numa altura de crise económica, bom... esta na altura de levantar o guito da conta suiça ou offshore em geral e bazar para algum paizeco esquecido (como outrora foi Portugal). Porque não estão muito longe a evacuação em massa e a reeducação política através da inserção de uma bala na nuca. Para dar só um exemplo assim mais soviético. 
Voltando à batata apostólica: eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, este verniz da tolerância ia estalar das bem manicuradas unhas da doutrina católica. Os católicos são mais ou menos como aquela tia-avó meio bêbeda nos jantares de família. Começa por ser cordial e bem-educada, fala com as irmãs e faz festinhas aos pequenos, ajuda a trazer coisas da cozinha, mas atenção. Podem ter a certeza que, depois de vários cálices de Porto enchidos às escondidas e todo o vinho que ela conseguir surripiar dos copos dos convidados mais distraídos, a dita tia-avó se vai passar. E é então que a vão ouvir dizer, num stage whisper gélido e alto, tudo o que ela sempre pensou acerca do segundo casamento do sobrinho, do facto da prima ainda ser solteira, do cão dos netos, da casa e do marido da irmã, da plástica da sobrinha e do sítio para onde vocês todos podem ir.
(Por falar nisso, não tenho uma tia-avó assim, mas aceitam-se candidaturas)
Ou seja, o gato saiu do saco. Foi dito: a homossexualidade não é, do ponto de vista deste e certamente de outros vicários de Cristo, normal. Mas, para ser algo que este Bispo não foi - caridosa -, vamos tentar ver a coisa por um prisma mais simpático. Se calhar o que ele queria dizer era que os homossexuais, não sendo normais, têm poderes paranormais. Podem dobrar colheres com o pensamento, por exemplo (ou vergar pessoas com comentários sarcásticos). Podem adivinhar o futuro (mormente "ele não me vai voltar a ligar" ou "ela não vai parar de me ligar"). Um superpoder têm de certeza. Quem já fez um coming out sabe que isso é muito, muito mais difícil do que voar, mudar de roupa numa cabine telefónica ou saltar por cima de arranha-céus.
E é certamente mais admirável que usar uma batina para condenar os seus (dele) irmãos em Cristo. Ora, francamente, bicha!