quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Gripe Aaaargh


T menos 72 horas.
Sábado, 5 de Dezembro, 13:45, Monte Estoril, café: Peço um café e uma fatia de tarte de lima. A minha mãe, contrariando um hábito de 50 anos, pede um chá. Pergunto se se sente bem e ela responde que tem estado um pouco agoniada, facto que atribui a uma açorda de marisco.
21:00, em casa: recebo um telefonema da minha mãe a dizer que teve febre, foi à CUF e a mandaram fazer o teste da gripe A. Esta informação é FYI only.

T menos 24 horas.
Segunda-feira, 7 de Dezembro, 20:00, em casa: ao contrário de todas as previsões, de ausência de febre, dores musculares, alucinações psicadélicas ou qualquer outro sintoma que não seja uma ligeira indisposição potencialmente atribuível a uma açorda, confirma-se o diagnóstico da minha mãe: é gripe A. Receitam Tamaflu, antibióticos e repouso. E avisar as pessoas com quem tem estado em contacto frequente.

Ground Zero.
Terça-feira, 8 de Dezembro, 13:15, centro de atendimento permanente da CUF. Entro na sala de espera. Vários rostos meio-tapados por máscaras viram-se na minha direcção. Refilo "oh por amor de deus" um décibel mais alto que o necessário e falo com a recepcionista. Segue transcrição aproximada do diálogo.
"Boa tarde, queria fazer o teste da gripe A".
"O teste tem de ser prescrito por um médico".
"Ah, é que a minha mãe foi diagnosticada com a gripe ontem e como tenho estado em contacto com ela achei melhor fazer o teste."
"Hoje só temos um médico de serviço, isto está um bocadinho demorado."
Tenho pensamentos pouco caridosos acerca da pessoa de José de Mello e pergunto:
"Mas posso marcar uma consulta, ou esperar?"
"É por ordem de chegada e estão, ora deixa cá ver, um dois, três... sete pessoas à frente. Quer fazer a inscrição?"
"Sim, se faz favor."
Silêncio embaraçoso.
"E onde está a paciente?"
"Sou eu."
"Ah, pensei que era para a sua mãe."
Volto a insultar a memória de José de Mello, deixo os meus dados e vou sentar-me o mais longe possível dos mascarados. Que, de qualquer maneira, estão a olhar fixamente para um ecrã gigante que só transmite a SIC Notícias. Sem som.
13:30: Ponho os phones, ligo o walkman na Europa-Lisboa e saco da Vanity Fair. Já a li, mas guardei a peça sobre o Avedon e a década de 60 para um dia de chuva. Este é o dia de chuva.
13:45: Noto, com uma ponta de inquietação, que ainda não foi chamada uma única pessoa. Começo a fazer um cálculo aproximado do tempo que pode demorar e uma lista de sítios por perto aonde posso ir para matar tempo. Há um único sítio, e a grande atracção é ter uma loja de crocs e outra da Occitane en Provence. Pouco apelativo.
13:55: O artigo sobre Avedon refere um fotógrafo alemão que o influenciou, um tal August Sander. Faltam 3 páginas do artigo. Lembro-me que o meu telemóvel tem acesso à net e faço uma pesquisa por imagens de August Sander. Pelo que consigo ver em dimensões microscópicas, parece interessante.
14:30: Passa um rapaz de braço ao peito. Está naquela fase da puberdade em que ainda faz coisas de criança, como chorar baixinho por se ter magoado. Sinto uma pena tremenda do rapazinho que possivelmente acabou de partir o braço. O pai anda à volta dele, a pegar no casaco e a voltar a pousá-lo, claramente à procura de alguma coisa que fazer para ajudar o filho. É uma cena comovente.  Por volta das 15:40 esta família vai voltar a passar pela sala de espera, altura em que a minha compaixão se terá transformado num desejo irreprimível de partir um braço a cada restante membro da família.
14:35: O artigo do Avedon chega ao fim. Re-folheio o resto da revista. Este mês era particularmente boa e não me sobra nada para ler, a não ser as peças sobre compras, jóias, perfumes, sapatos, trinkets, etc, destinadas a ser precisamente folheadas e não lidas. Volto a perguntar a mim mesma se aqueles chocolates em forma de cães poderão ser encomendados desde os EUA, se terão retrievers de pêlo raso, e se valerão os US$ 28,00. Depois aplico mais ou menos as mesmas perguntas à coluna em forma de balão da Sony. Fantasiar com uma nova aparelhagem ocupa-me os restantes minutos das 14:00.
15:00: Também trouxe um livro, ou o que é que acham? Começo a ler. Cada frase tem de ser lida e relida devido a uma séria dificuldade em concentrar-me.
15:20: Reparo que algumas pessoas vão sendo chamadas e pergunto-me se será coincidência ou paranóia ou apenas uma distorção auditiva que todas tenham nomes muito, muito parecidos com o meu.
15:40: Ocorre-me que o teste da gripe A não é coberto pelo meu seguro e vou ter de pagar mais ou menos o equivalente a 15 maços de cigarros. Começo a ponderar opções potenciais: o centro de saúde está fechado, e de qualquer maneira o tempo de espera lá é o dobro. E esse é o tempo de espera para se poder ficar à espera: vai-se de manhã, espera-se para tirar uma senha, volta-se à tarde, espera-se para ver o médico. Às vezes acabam as senhas. Invejo Cuba.
15:45: A minha criança interior ameaça atirar-se ao chão interior e fazer uma birra interior por estar à seca há tanto tempo. Levanto-me e vou até à recepção. O recepcionista diz que tenho duas pessoas à frente. A criança interior acalma-se.
16:15: Sou chamada. Entro num cubículo onde me espera uma médica muito, muito queque. E que parece um bocadinho, mas só um bocadinho, a rainha Sofia. Explico-lhe a situação, fazendo algumas pausas para me lembrar da situação, porque duas horas de espera transformaram-me o cérebro em gelatina. A médica usa mais interjeições ("ufff", "aiii", "oh, isso então...") do que substantivos ou verbos. É uma comunicação algo truncada e temos um momento um pouco irmão Marx quando ela me pede que me deite na marquise quando o que quer dizer é que quer que me sente na marquise. "Ponha-se aí" tem a sua ambiguidade, concordarão.
16:25: A médica sabe duas coisas: 1), que o pin da Borboletas na Barriga que eu tenho ao peito é muito querido; 2) que eu devo fazer o teste da gripe A e não devo ir trabalhar até ter os resultados. 
16:27: Levam-me para uma sala de espera, vazia, para esperar pela técnica que me virá fazer o teste. A enfermeira que me conduz até à sala dá-me uma máscara. Não a visto. A enfermeira aconselha-me a vestí-la. Segue uma transcrição aproximada do diálogo.
"Mas estou sozinha aqui na sala." (pergunto-me a mim mesma: estarei? será que esta sala está cheia de fantasmas e é normalmente usada para testar capacidades mediúnicas?)
"Sim, mas é por causa dos profissionais de saúde."
"Então, quando eles (eles?) entrarem, ponho a máscara."
Deixo cair a máscara para trás da marquise assim que a enfermeira sai. Aconchego-me na mesma (marquise, não enfermeira) a ler o resto do livro que comecei na outra sala de espera.
16:47: Chega a técnica. Espeta-me um pauzinho, estilo lápis de manicure, nas amígdalas. Espeta outro pauzinho na minha narina direita, o que de faz imensas cócegas. Não consigo parar de rir enquanto agradeço à técnica e ela me informa que os resultados devem chegar no dia seguinte.
16:57: Depois de perguntar a alguns profissionais de saúde transeuntes se preciso de voltar a falar com a médica, se tenho de entregar alguns papéis a alguém ou se me posso ir embora (enquanto a minha criança interior me acusa de ser má mãe), volto ao cubículo da médica. Ela receita-me paracetamol e anti-inflamatórios (para fins lúdicos, aparentemente) e garante-me que já teve pacientes com tantas dores musculares que tinham de tomar "imensos" analgésicos. Assalta-me a suspeita de que a médica está na verdade a falar ao telefone, por auricular, e que nada do que disse até agora era de facto dirigido a mim.
16:58: a médica pergunta quando é que chegam os resultados. A cortina está meio aberta e entretanto aproxima-se do cubículo um outro profissional de saúde transeunte. Segue-se uma bizarra coreografia de mal-entendidos e quase-entendidos, que tentarei reproduzir.
Médica - Quando é que tem os resultados?
Eu - A técnica disse que chegavam amanhã.
Profissional de Saúde Transeunte - O quê, amanhã?
Eu - Sim, foi o que me pareceu que disse a sua colega.
Médica - Pareceu? Mas então não lhe perguntou?
Eu - Sim, ela disse...
Profissional, etc - Mas está mal, olhe que isto demora entre 24 e 48 horas, não é assim, não sei quem é que lhe disse isso mas...
Médica - Mas afinal o que é que se passa? Mas afinal quanto tempo é que leva? Mas final quem é que fez o teste?
Profissional, etc - Não deviam dizer às pessoas que é 24 horas quando pode demorar mais.
Eu - Se calhar eu é que ouvi mal...
Médica - Mas ouviu mal?
Profissional - Afinal, quando é que chegam os resultados do seu teste?
Por volta desta altura começo a balbuciar coisas sem nexo num tom ligeiramente agressivo, como uma testemunha incompetente num drama de tribunal de segunda categoria.
17:00 (aproximadamente): Saio do cubículo.
17:01: Pago na recepção e confirmo se têm o meu telemóvel para me ligarem com os resultados.
17:05: O recepcionista acaba de imprimir e carimbar todas as vias de todos os recibos.


Epílogo:
Não tenho gripe A. A minha mãe está melhor. 




Nenhum comentário: