Há uns meses atrás, a PEF (Pequena Empresa Familiar) onde eu trabalho foi comprada por uma GMI (Grande Multinacional Importante). Foi uma união feliz e desejada por ambas as partes, um pouco como o casamento da Duquesa do Cadaval com o Príncipe de Orleans: uma coisa bonita que fica bem num
spread da
Vogue e que, embora inevitavelmente acabe também nas páginas da imprensa cor-de-rosa, faz todo o sentido financeira, genealogica e sentimentalmente. A única falha nesta comparação é que, como todos sabemos, os executivos das GMI são, ao contrário dos aristocratas e monarcas sem trono dos nossos dias, plenipotenciários. Um Orleans ou um Bragança pouco mais pode almejar que trazer visibilidade a algumas boas causas e/ ou acenar à distância num raro casamento real, enquanto que os executivos das GMI vivem em casas palaciais, trabalham em instalações palaciais, compram arte, são mecenas de tudo e mais alguma coisa e, caso desejem, podem mandar executar, das mais diversas e criativas formas, quem bem entenderem. Para além disso, mais ou menos governam o mundo, ao contrário dos AMST (aristocratas e monarcas sem trono). Enfim,
plus ça change...
Como em qualquer casamento, nós os da PEF mudámo-nos para a casa da GMI, onde fomos muito bem recebidos e, depois de arrumarmos o enxoval, lá nos dedicámos à vida quotidiana de deveres matrimoniais. Toda a gente me tinha avisado que o ambiente de uma PEF é muito diferente do de uma GMI (sendo o da primeira claramente o preferido). Nas GMIs, disseram-me, as pessoas vivem enterradas em burocracia, a cumprir processos incompreensíveis para fazer funcionar sistemas ultrapassados e ineficientes. Uma vez mais, um pouco como uma monarquia absoluta no seu pior: uma espécie de despotismo iluminado sem terramotos nem Baixas Pombalinas.
Como a mais nova das noivas de Barba-Azul, não vi nada de assustador ou suspeito na minha nova casa. As pessoas eram simpáticas, as instalações óptimas, o sistema parecia funcionar e temos autonomia q.b.
Como acontece em muitas GMIs (exceptuando aquelas em que os trabalhadores, ups, colaboradores, são ou alimentados a soro para não saírem do local de trabalho, ups, colaboração), a nossa tem não só uma cantina com óptima comida como também, em cada andar, uma pequena copa onde os macrobióticos, os alérgicos a tudo e as inevitáveis fêmeas que se alimentam exclusivamente de batidos diuréticos de Maio a Setembro podem fazer as suas refeições. E foi aí que tive o meu primeiro vislumbre do estranho mundo das GMIs.
Na sexta-feira, fui à copa aquecer a minha refeição macrobiótica e vi uma banana em cima da mesa. Na segunda-feira, fui misturar o meu batido diurético e lá continuava a banana. Na quinta-feira, fui aquecer o meu bacalhau à brás especial para alérgicos a bacalhau e a banana, impávida e serena, permanecia em cima da mesa, talvez um pouco mais sombreada mas ainda apresentável.
Na semana seguinte comi na cantina e foi só na outra segunda-feira que voltei à copa para aquecer um chá. Em cima da mesa vi um objecto oblongo e recurvado de cor violácea escura, e no ar pairava um odor inominável. Mal a reconheci, mas era a minha boa velha amiga banana.
Foi só passados mais uns dias que a estranheza da situação me tingiu em pleno. A banana, como o Corvo de Poe, não se mexera uma polegada, mas, como o Corvo de Poe, estava agora escura como o bréu. Uma banana preta. Mais precisamente, uma banana deixada apodrecer.
Comentei com uma colega da minha PEF que havia uma banana preta, possivelmente podre, na copa. Quando ela me perguntou: "Então e ninguém faz nada?", tenho de admitir que me ocorreu chamar a Associação Protectora de Bananas para castigar o responsável pelo apodrecimento do simpático e outrora fresco e vital fruto. E foi então que percebi: numa GMI, ninguém é responsável por uma banana. Alguém a compra, alguém a traz para a empresa, alguém a deixa de parte e ela apodrece. Mas, se chega a acontecer que alguém repare, ninguém está autorizado a deitá-la fora (ou, pra os mais aventureiros, a comê-la). Ainda não sei se isso é um sistema eficaz ou não, mas é certamente estranho.
Ah, e eu enchi-me de coragem e deitei fora a banana. Foi difícil, mas era um acto de misericórdia e alguém o tinha de o fazer.