Há duas coisas que eu sempre quis encontrar na vida e que nunca consegui: um bom corte de cabelo e uma boa aula de ginástica. Já lá estive perto, já encontrei cortes e aulas satisfatórios, divertidos, engraçados, mas bons, daqueles que se sabe que é para o resto da vida... não. Isto é, até agora.
A frustração capilar é capaz de se dever a um mero problema de comunicação. Se eu digo a um cabeleireiro, "quero uma coisa assim tipo Meg Ryan", fazem-me um corte à Figo; se digo "um assim do género da Amália", fazem-me um corte à Pauleta; se digo "escadeado, tipo Jennifer Aniston", fazem-me um corte à Beckham (David, não Victoria); e se digo que quero "curtinho, como a mulher do Beckham", fico a parecer o João Pinto. Pode ser alguma dívida kármica que eu tenha com o mundo do futebol, não sei, mas sai sempre um bocadinho ao lado da baliza, o corte de cabelo.
Agora, a ginástica... Acho que encontrei A aula.
Para perceberem bem o sucedido, oh ambos os leitores deste blogue, há que saber algo acerca de mim que é um pouco vergonhoso: eu sou O target publicitário. Eu compro qualquer balde de merda que tenha uma boa estratégia de marketing por trás (incluindo, por exemplo, usar a expressão "balde de merda" mais vezes do que seria necessário só porque aparecia naquela canção giríssima dos Ena Pá sobre um urso de pelúcia). Isso não é nada de mais, dirão ambos os leitores deste blogue. Toda a gente é mais ou menos receptiva às suegstões do marketing, dirá um; pois é, dirá o outro. Mas o meu defeito é apaixonar-me por campanhas de marketing mesmo sabendo que o produto é uma merda. Outro exemplo típico: se eu na altura tivesse disposable income, em vez de só uma semanada, teria gasto tudo em quantidades loucas de WC Pato, só porque amava de morte o anúncio com o patinho. Aliás, não era tanto o anúncio em si ser giro, ou o patinho ser fofo, mas só o facto de haver um PATO num ANÚNCIO. Parecia um admirável mundo novo. Aquilo deliciava-me.
Um efeito mais ou menos semelhante foi surtido (sim, sei que não há passiva deste verbo) quando alguém me disse que o Pilates tinha sido inventado na Alemanha após a Grande Guerra para ajudar à recuperação dos soldados feridos. Céus , o que me foram dizer. Em uns meros cinco segundos, o seguinte filme passou-me pela cabeça:
Karl Wilhelm Philip Heinrich Von Turm und Pilates nasceu em Viena em 1890, oriundo de uma família aristocrática com fortes tradições militares. Os pais eram de um pendor artístico e bastante liberais. Por exemplo, não eram nada anti-semitas, ao ponto de serem considerados, em alguns círculos sociais, uns desmancha-prazeres. Na verdade, o pai de Willi (como era chamado) tinha ficado revoltado com o caso Dreyfuss, e tinha chegado a escrever uma carta de protesto formal ao seu oficial comandante em defesa do Col. Dreyfuss, exigindo que o império Austro-Húngaro anexasse a França, ou pelo menos deixasse de beber vinho francês. A mãe de Willi disse-lhe para deixar de ser parvo e deixar a carta em paz que eles tinham uma recepção às oito e tinham de se vestir e que se despachasse mas era. O pai de Willi disse que estava bem, mas que então ia chamar Alfred ao próximo filho que tivessem (Fred, o irmão mais novo de Willi, que veio a ser um notório artista de cabaret com o nom de guerre "Mathilde").
Willi foi educado nas melhores academias militares (vão ao google ou ao wikipedia ver quais eram que eu não estou para tanto) e, quando estalou a Grande Guerra, foi dos primeiros a pôr os pés na Flandres. Motivava-o o mais puro e refinado sentido de dever (convém lembrar que o Dever era o MDMA do início do século) e uma vaga sensação de que alguém, de preferência alguém de inclinações imperiais, que soubesse tocar bem piano e tivesse lido Goethe e Kant de trás para a frente, pusesse "ordem neste chavascal" que era a Europa. É claro que o inferno das trincheiras transformou este jovem idealista numa sombra do que outrora fora. Ao testemunhar a humanidade no seu pior e mais vil, percebeu quão determinantes eram as condições materiais na formação do espírito, deu razão a Hegel em geral e a Schoppenhauer em particular, e fez de tudo, incluindo coisas que nunca se adequariam a qualquer formulação do imperativo categórico, para sobreviver e voltar a casa - a Viena, esse bastião da cultura e da civilização. Uns meses antes do armistício, o seu regimento foi bombardeado com gás mostarda na terra-de-ninguém. Willi e outro oficial foram os únicos sobreviventes.
No hospital, disseram-lhe que os efeitos daquele gás ainda não eram totalmente conhecidos e que se preparasse para não voltar a ter a mesma vida activa de antes. Nunca poderia voltar a andar de cavalo a trote nem a jogar gamão de forma entusiastica. Mas, pelo menos, estava são; o outro oficial do regimento passaria o resto da vida num asilo de loucos.
Regressou a Viena poucas semanas após o armistício e não reconheceu o mundo que o esperava e pelo qual tinha lutado. A cidade parecia-lhe repleta de sombras violentas que vagueavam pelas ruas sem destino. Willi passava os dias no quartel, a ler, evitando os outros oficias. Por vezes, ia com alguns amigos civis correr os cabarets e as tabernas da cidade. Uma vez, já muito bebido, caiu numa sarjeta e não se conseguia levantar. Pareceu-lhe que nunca tinha saído das malditas trincheiras.
Antes da guerra, tinha estado noivo de uma rapariga encantadora: Clara, uma rapariga de uma família da alta burguesia, bastante endinheirada, cujo espírito era em absoluto o de um artista. Como a sua homónima, tocava e compunha para piano, amava o bailado e o teatro, e acreditava que só através da expressão artística o espírito humano podia aspirar ascender aos planos mais elevados. Willi amava Clara de todo o coração, mas tinha deixado de lhe escrever pouco tempo após o início da guerra. Agora, justificava o seu afastamento da mulher amada dizendo que não a queria prender a um compromisso com um homem desfeito; a verdadeira razão, contudo, era outra. Willi não conseguia admitir a Clara que tinha deixado de acreditar que o espírito humano se pudesse elevar a um plano superiores - apenas era capaz de decaír a níveis cada vez mais baixos de bestialidade. As trincheiras, para ele, tinham destruído a possibilidade da arte.
Mas, como um pequeno Werther sartreiano, não conseguia obrigar-se a terminar formalmente o seu noivado. E Clara também nunca o tinha voltado a contactar. A família, que se mantinha em contacto com a dela, insinuava-lhe por vezes que ela estava pacientemente à espera dele.
Um dia, o silêncio formal rompeu-se: Willi recebeu um convite para o baile de aniversário de casamento dos pais de Clara. Pareceu-lhe uma ironia da mais cruel: um baile? Ele, um deficiente, um doente pulmonar, que mal era capaz de subir um lance de escadas sem tossir como um tuberculoso, num baile cheio de jovens a vibrar de vitalidade e força? Talvez a ver Clara a dançar com um deles -- o novo noivo, o marido?
Nessa noite, Willi foi ver uma actuação do irmão. Mathilde queria falar com ele e pediu-lhe que fosse ao seu camarim depois do espectáculo. Num cubículo na cave, cheio de boas e sapatos Schiaparelli, Mathilde ralhou-lhe como só um irmão sabe: que não o compreendia, que se sentia orfã de irmão, que não o queria ver a desistir da vida, quando tantos jovens austríacos tinham morrido naquele lamaçal do inferno e ele, ele podia ainda caminhar por Viena de braço dado com a sua amada. Bastava querer. "Sabs, mein scahtz, ", disse, passando-lhe a mão pelo cabelo, "não é tão difícil como parece. É só deixar acontecer".
Mathilde saiu para receber uns admiradores e Willi ficou sentado no camarim, cabisbaixo, com um corpete elástico de Mathilde na mão. Suspirou. Fechou os olhos. Respirou fundo. Sentiu o ar a encher-lhe os pulmões feridos. Era como se fosse a primeira vez que respirava fundo desde 1914. Extasiado, esticou o corpete com ambas as mãos e expirou. Sentia-se renascido.
Nos dias seguintes, recuperou uns apontamentos de anatomia e física que tinha do liceu e mergulhou na leitura, uma vez mais. Improvisou exercícios com alguns elásticos e pesos rudimentares. Sentia-se vivo e cheio de energia.
Passadas algumas semanas, os pais de Clara celebravam o seu aniversário de casamento com um baile. Clara estava ao seu lado a receber os convidados, à porta. Lentamente, um vulto aproximou-se, de longe. Era um oficial. Subiu as escadas pausadamente, degrau a degrau, e chegou ao topo da longa escadaria sem arquejar, com uma respiração perfeita e fluída. Clara caminhou suavamente até ele e disse:
"Willi. Eu sabia que vinhas"
Estão a ver? Se calhar não foi nada assim, mas só a ideia...
Seja como for, são uns exercícios muito fixes e sabe maravilhas.