Para assinalar a catrefada de tempo que eu deixei passar sem escrever neste blogue, vou ser extemporânea.
Há dias vi o filme Marley e Eu (não, não foi em DVD, foi mesmo em cinema; vão ao dicionário ver "extemporânea"). Gosto muito do Owen Wilson, não suporto a Jennifer Aniston, mas adoro cães. A última vez que tinha visto a Jeniffer Aniston foi numa repetição do Friends, que não consigo achar piada nem fazendo-me cócegas com uma pena. Mas a última vez que vi o Owen Wilson antes do Marley foi no brilhante Darjeeling Express, cheio de ligaduras, pensos e conflitos interiores muito bem expressos num understatement de representação mais que louvável. E antes disso, numas fotos desfocadas do senhor a sair do hospital depois de uma tentativa de suicídio (ou, como os agentes de imprensa lhe chamam, "acidentes com gás num fogão eléctrico" ou "desventuras a fazer a barba nos pulsos"). O que serviu bastante para pôr o filme em contexto.
As coisas nem sempre parecem o que são e raramente são o que parecem. A imagem certa no contexto certo com a intenção certa pode ter um resultado tão trágico e infeliz como um soufflé que se deixou cozer demais. A comédia nem sempre tem os resultados cómicos desejados. O Will. E Coyote de certeza que acreditava, com todo o coração, que se pisasse aquele X no chão ou pusesse a pata na catapulta, não lhe acontecia nada, tal como não acontecera ao pápa-léguas segundos antes. Mas é preciso ter um coração de pedra para ver aquele focinho a descair sob a sombra da bigorna prestes a cair-lhe em cima e não ficar um pouco comovido. Um palhaço numa festa de anos de crianças é uma coisa muito divertida, até que reconhecemos o palhaço como o nosso orientador de tese de mestrado e nos lembramos que ele costumava ter as mãos a tremer quando dava aulas antes das 10 da manhã. (Não, isto não é baseado num caso real... acho eu.) Isto para dizer que Marley e Eu é um dos filmes mais trágicos que já vi. Tão trágico que nem sequer chorei.
Talvez seja por causa do ar ainda totalmente despido de esperança no sentido da vida de Owen Wilson (ele às vezes tem ares da Vivien Leigh depois do Eléctrico Chamado Desejo. Passei grande parte do filme à espera que ele dissesse que sempre dependeu da bondade dos estranhos). Talvez seja por a Jeniffer Aniston manter, durante uma hora e meia, uma expressão mais cansada que um soldado americano a fazer a enésima ronda pelo mercado ao ar livre de Bagdade. Talvez seja por o cão morrer no fim e eu no fundo ser uma criança que nunca percebeu muito bem a necessidade narrativa de os cães morrerem no fim. Mas oh céus, que filme tão triste.
Owen Wilson é John Grogan um jornalista admitidamente medíocre que arranja um emprego a escrever crónicas sobre a vida local (um trabalho que ele despreza mas ainda assim considera acima das suas capacidades). É casado com uma mulher que o suporta menos mal e faz um suspiro profundo antes de lhe dizer seja o que for, incluindo "bom dia", e que é claramente mais dotada profissionalmente do que ele, mas que deixa de trabalhar assim que nasce o primeiro filho -- e ela não se importa nada com isso, a sério, é melhor assim, deixa estar ("suspiro"). O melhor -- e, ao que parece, único -- amigo é um repórter correspondente que passa metade do tempo em viagem e a outra metade a engatar raparigas bonitas, tonificadas e dispostas a tudo, e ainda arranja tempo para tomar café com ele e perguntar: "conta-me lá outra vez como é bom estar casado?". Os vizinhos, só os conhece quando um deles é assaltado à porta de casa e isso faz com que se decidam mudar para uma zona ainda mais queque, cara e isolada.
Por isso, ele compra um cão. A razão oficial do cão é servir de "treino" para terem filhos. Mas, para quem sabe encontrar subtextos e tem alguma formação em psicanálise e/ou mitologia grega, o cão é uma compensação para um complexo de Peter Pan mal resolvido, um cheirinho de hedonismo pagão numa vida apertada em constrições cristãs, um pouco de eros numa existência completamente afogada em tanathos. Prova conclusiva disso? O cão caga onde quer.
Tenho admitir que sou uma dog person. Adoro cães. São fofos, leais, amantíssimos, engraçados, fofos, companheiros, honestos, fofos e atentos protectores. Mas como boa inimiga da ma fé, procuro sempre os potenciais motivos ocultos das coisas, e tenho de admitir: os cães são a perfeita compensação dos espíritos selvagens restritos pelas circunstâncias. A Emily Dickinson tinha um cão. A Elizabeth Barrett Browning tinha um cão, cuja biografia foi escrita por Virginia Woolf, que também tinha um cão. A Emily Bronte tinha um cão. A Margarida Rebelo Pinto, por exemplo, não tem cães. Estão a ver onde quero chegar?
O que é que se faz com os cães? Passear e brincar. As duas actividades mais sãs e mais ansiadas pelo ser humano. Só que, ao contrário dos seus amigos bípedes, os cães estão-se, muitas vezes literalmente, a cagar: rosnam a quem não gostam, lambem as mãos a quem gostam, cheiram, pisam, esfregam-se e comem o que bem lhes apetece (quando o conseguem apanhar), correm atrás do que querem, saltam para onde querem, e raramente andam em linha recta. A natureza, dizia Hundertwasser, não tem linhas rectas. O coração humano tão-pouco, mas muitas vezes vivemos vidas desenhadas à régua.
Ok, antes que eu comece a falar como um instrutor de Ioga; estava a tentar ilustrar o papel do Marley na vida daquele jornalista frustrado, marido mal-amado, pai pouco capaz e escritor só por acidente famoso, John Grogan. Um dos fios narrativos do filme é (haha, trocadilho) a trela do cão. O Marley, como sabem todos aqueles que se dão ao trabalho de ler subtítulos, é o pior cão do mundo. Porta-se - de todas as maneiras possíveis - mal. Por isso, anda sempre de trela (vão passear para uma praia de cães mas se um cão se portar mal na praia é expulso dela) -- que passa grande parte do filme a partir para correr atrás desse Algo eternamente transcendente, efémero e simbólico (ou de um gato). Num momento perto do fim, Marley e o dono estão na praia. Estão a dias de mudar para outra cidade, onde o dono vai começar um novo trabalho (presumivelmente uma promoção, para a qual ele não se sente nem preparado, nem motivado, nem qualificado), levando consigo uma mulher algo reticente ("suspiro. Bom, queres mesmo este emprego, não é?") e uns filhos que estão entre o hiperactivo e o desordeiro. Num acto de transferência que faria com que Freud se engasgasse na bebida ou começasse a tossir insistentemente e a bater com a caneta no bloco de notas, o jornalista decide: what the hell. Este cão andou de trela a vida toda, preso enquanto via todos os outros a brincar e a correr. Ele merece um momento de liberdade. E solta o cão. Que, numa sequência mediocremente musicada, corre pela praia, saltita ao redor de outros cães, abana-se freneticamente... e depois, prontamente, caga à beira-mar.
Mais tarde, não se percebe se como consequência directa disto ou não, eles mandam abater o cão. A devota esposa, que foi dona do cão desde antes de ser mãe, fica em casa porque tem mais que fazer. Os miúdos, que têm um pai depressivo, uma mãe passiva-agressiva e vivem numa quinta isolada onde neva durante 9 meses por ano, têm inveja do cão ( e, um dia, virão a entrar pelo liceu adentro com caçadeiras, estou convencida). O homem vai despedir-se do seu fiel amigo e chora compungentemente ao testemunhar esta castração simbólica ritual. Depois escreve um livro que é publicado em toda a galáxia e o leva a ganhar biliões de carcanhol. O fim.
Sabem aquela cena de cinema quando o público não gosta de um filme e começa a atirar pipocas para o ecrã? Pois é. Eu fiquei com vontade atirar Prozac para o ecrã.
E chamam a isto comédia? Por favor. Para a próxima já sei: quando me quiser rir, vou ver o E Tudo o Vento Levou ou uma daquelas sitcoms do Bergman!