segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Duas Situações Entram Num Bar...


Como talvez saberão ambos os dois leitores deste blogue, a empresa onde trabalho passou recentemente a funcionar em regime de horário flexível. Esse dramático acontecimento tem tido efeitos pantagruélicos (também não sei) na novela que é a minha vida, mas dois dos efeitos conjugaram-se hoje de forma curiosa:
1- tenho menos tempo para escrever no blogue;
2 - ouço muito mais rádio no carro.
Que é o que se chama dar uma grande volta para dizer que hoje ouvi uma coisa no programa do Alvim e lembrei-me de vir escrever no blogue.
Ora hoje o entrevistado do Alvim era o em todos os sentidos da palavra e apetece dizer literalmente mítico editor da & etc., Vítor Silva Tavares. Vale a pena irem buscar o podcast disto porque o homem tem umas belas histórias para contar.
 
Estava eu a ouvi-las, deliciada, e a sentir-me nostálgica por um mundo editorial que nunca conheci e temo nunca vir a conhecer, quando puseram no ar um ouvinte.
Digo já à partida que era um ouvinte muito bem intencionado. O contexto era, em geral, o da decadência dos hábitos de leitura. Diz então o ouvinte que concorda, que é uma pena, e que precisamente tinha acabado de vir de uma escola onde tinha estado a, e passo a citar, dinamizar uma iniciativa. 
Ainda entretive a esperança de que o senhor fosse traficante de droga ou scout de uma agência de modelos, mas não, era mesmo uma iniciativa (que requeria dinamização externa, aparentemente, mais ou menos como uma peça do Ikea) destinada a motivar os petizes a ler.
O Vítor Silva Tavares disse qualquer coisa como "pois" e eu entretanto desliguei porque, 1), tinha chegado ao ginásio e 2) tinha a cabeça a rodopiar de revolta.
Como saberão os dois ambos leitores deste blogue, enquanto todos os adolescentes incautos da minha geração fugitivos da matemática hesitavam entre Psicologia, Letras ou Direito, eu escolhi fazer a voltinha com mais paisagem que vai dar ao desemprego, também conhecida como curso de Filosofia. E há uma coisa que para as gentes de Filosofia é como kriptonite para o Superhomem, queijo de cabra estragado para as pessoas alérgicas a lactose ou a voz da Manuela Moura Guedes para o resto da humanidade, são os conceitos vagos. Nós somos, apesar do que parece, gente muito literal. Autenticidade é autenticidade. Boa fé é boa fé. A Vontade Nietzscheana é a Vontade Nietzscheana, não é a vontade de ir à casa de banho. A Ideia platónica é a Ideia platónica, não é a ideia de ir ao cinema em vez de ficar em casa. A Categoria aristotélica é a Categoria aristotélica, não é a categoria de um jogador. As palavras significam coisas. E aquilo que nos faz felizes, como a um gatinho com um novelo de lã, é ligar palavras e coisas. Somos uma gente simples, nós os estudantes de Filosofia. O que nos faz entrar em curto-circuito são palavras que não significam nada. Vagarias. Vazios. Deturpações do próprio conceito de sentido. Anti-palavras. Sopros de ar sem finalidade melódica ou lógica. Palavras como "situação", "modo", "complicado", e outros eufemismos espremidos de qualquer sentido. E quando uma frase é composta quase exclusivamente dessas vagarias - vide, "dinamizar uma iniciativa" - ... bom, dá-nos uma coisinha má.
A verdade é que não se pode estudar Filosofia sem um certo pendor para aquilo a que antigamente se chamava "palha" e agora possivelmente se chama "extensão sinonímica do sujeito". Um exemplo belíssimo disso era aquele cartoon delicioso do Independente, a Filosofia de Ponta. Afinal, não se pode fazer 7000 anos de reflexão acerca de tudo o que existe, porque, como e com que finalidade existe, sem incorrer em alguma verborreia. Mas regra geral a tendência para discorrer extensivamente sem finalidade aparente era visto com uma relativa tolerância, mais ou menos como quando se faz batota nos abdominais e se puxa com as costas (vim do ginásio).
Foi só quando cheguei à fase dantesca do curso, o estágio pedagógico, que percebi, mais ou menos como um protagonista de um filme de acção quando se apercebe da verdadeira extensão do plano de domínio do mundo do vilão, que isto da "palha" era na verdade todo um palheiro.
Quando começamos a trabalhar numa coisa a que se chamava "plano de aula", disseram-nos que íamos definir as aulas segundo materiais, conteúdos e objectivos. Mas conteúdos e objectivos numa aula não são a mesma coisa, pensei ingenuamente? O diálogo foi mais ou menos assim:
Orientadora: Então que objectivos definiriam para esta unidade lectiva dedicada à Ética?
Eu (para mim mesma): Nestas cinco aulas sobre Kant? (em voz alta): Ahn, ensinar o imperativo categórico?
Teria, aparentemente, sido mais aceitável que tivesse sugerido transformar a sala de aula numa masmorra e depois convidar pedófilos sádicos a castrar ritualmente os alunos que tinha a meu cuidado. "Ensinar", explicou-me a minha orientadora, era uma forma de violência ideológica, psicológica e social. "Ensinar" significava impor conteúdos à mente passiva do aluno. Se eu achava que a carreira no ensino passava por "ensinar", estava a reduzir o aluno a uma nulidade ontológica, ética, social, política e pessoal. Estava a privar o aluno da sua voz, da sua personalidade, da sua identidade. Estava a escravizá-lo num sistema ideológico e político que perpetuava o mito da passividade do aluno e da dinâmica imperialista do saber. Estava, ao que parece, um passo abaixo de Hitler. Um passo muito pequeno.
Deixei escapar um pequeno: "ah mas..." antes  de a orientadora passar a libertar-me das correntes de fascismo ideológico a que 4 anos de "aprendizagem" (pois, é sempre assim, os abusadores começam por ser vítimas) me tinham prometaicamente agrilhoado. A finalidade do ensino, explicou-me ela, a sua vocação suprema, o dom que tem a prestar à humanidade, é deixar, ou melhor, criar as condições que potenciem que, o aluno descubra por si os conteúdos. 
Refreei-me de apontar, que sendo neste caso o conteúdo o imperativo categórico, era pouco provável que o aluno o encontrassse atrás do sofá, mas devo ter feito uma expressão pouco persuadida, porque a orientadora passou então a evocar aquela arma irredutível da Filosofia que é a Alegoria da Caverna: "o mundo das Ideias tem de ser descoberto, não pode ser mostrado."
Uma vez mais, refreei-me de apontar que estávamos em Massamá, e não numa caverna, embora à primeira vista houvesse semelhanças, e reparei para mim mesma: "então em vez de dizer "ensinar", tem de se fazer palha".
Numa demonstração assustadora da verdade das teorias platónicas, os meus colegas de estágio tinham chegado à mesma conclusão, como verificámos num interlúdio digno do Memnon tido no café da esquina:
"então aqui na coluna dos objectivos em vez de ensinar tem de se escrever outros verbos".
Foi um ano de descoberta sinonímica: em vez de ensinar, veiculámos, transmitimos e revelámos. Deixámos observar, permitimos descobrir e incentivámos à visualização. Quando nos sentíamos um bocadinho mais ditatoriais, fazíamos notar. Mas, pela minha parte, nunca cometi esse crime contra a humanidade que era ensinar, o que se fez notar no desempenho uniformemente medíocre dos meus pobres alunos. Que até eram uns putos porreiros, mas que nunca aprenderam Filosofia. Tendo em conta que eram de Artes, não lhes fez falta nenhuma, e há tempos encontrei um aí pela vida e estava a dar-se muito bem, feliz que nem um cão (no sentido grego tardio do termo).
Pode parecer tautológio, mas é literalmente verdade que há muito, muito mais a dizer acerca da "palha" e da sua proliferação nas nossas vidas. Mas, para citar Epicuro, o micro-ondas apitou e agora vou jantar.

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