Há coisas com que a pessoa não merece apanhar logo de manhã. É verdade que eu não me levanto com as galinhas nem com qualquer espécie de ave, que o único trânsito que apanho de manhã é a velhinha da esquina a ir deitar fora o lixo e que as minhas tarefas, antes de ir trabalhar, são não me esquecer de usar amaciador, passear a cadela e não deixar as chaves de casa na porta. Mas ainda assim, gosto de imaginar que, momentos, antes de me levantar, uma manada de assistentes está a correr pelo mundo a gritar uns aos outros: «ela está quase a acordar! mudem-me a cor desse céu! Menos luz, mais nuvens! Quem é que mandou haver vento? Porcaria de estagiários! Tirem esse carro daí, que ela ainda se magoa!» e outras coisas assim. Não é tanto um Truman Show como um Diabo Veste Prada: gosto de me imaginar como uma pequena Miranda Priestley a entrar no meu dia como ela entra pela Vogue adentro. Por isso é que, quando acordo, a primeira coisa que digo é «get me Patrick!».
E contudo, esta manhã, caminhando pacíficamente com a minha cadela, deparei-me com este magnífico anúncio. Primeiro pensei que o software mental que uso para ler antes de tomar café tinha apanhado um vírus, mas depois arranquei o dito para ter provas concretas. Caso a fotografia esteja pouco legível, o que diz é:
«Final Digno. Mudanças para Todo País e Estrangeiro.»
Vamos imaginar quem é o Sr. X, dono da Final Digno, e que acontecimentos na sua vida o levaram a adoptar este nome para o seu respeitável negócio.
1 - O Sr. X é casado e feliz. A Sr.ª X é uma mulher trabalhadora, ainda atraente, mãe extremosa e amiga dos seus amigos. São casados há 17 anos, amam-se e respeitam-se, os filhos têm boas notas e não se dão com más companhias. O ano passado foram à Eurodisney. Contudo, pouco a pouco, a Sr.ª X começa a dar sinais de impaciência. O Sr. X ronca, sorve a sopa, passa as sextas-feiras à noite nos copos com os amigos e, ultimamente, só lhe responde mal. Nunca repara quando ela compra um vestido novo e no outro dia disse-lhe que se calhar ela devia ir para um ginásio «que lhe fazia bem». Vão sempre jantar a casa dos pais dele, mas se a mãe dela os vem visitar, é um ai-Jesus! Não é que o Sr. X esteja muito mais satisfeito com a situação. Ultimamente, tem trabalhado até cada vez mais tarde, os fins-de-semana são uma seca, ela implica com ele por tudo e por nada e nunca lhe apetece. A certa altura, cada vez que o Sr. X diz alguma coisa, a Sr.ª X só ouve um som como de unhas a arranhar um quadro de ardósia. E ao ouvir o suspiro da Sr.ª X, quando acaba de lavar a loiça, o Sr. X tem de se conter para não lhe dar um murro nas trombas. Um dia, estão os miúdos fora, olham um para o outro, ao jantar, à mesa da cozinha, e percebem: acabou tudo. Sem alarido, falam com os filhos, com a família, com os advogados. Ela fica com a casa, ele vai ficar com o irmão até arranjar outra coisa. Quando vão assinar os papéis do divórcio, ela acosta-o, à saída. Sem uma palvra, toca-lhe no braço e deixa-lhe na mão um botão de casaco. Um botão de uniforme da Marinha; era o que lhe tinha caído do casaco, na noite em que fizeram amor pela primeira vez. Ela perguntara-lhe: «vais ter sarilhos por causa disto?» e ele respondera: «valeu a pena.» Por causa da partilha de bens, ele tem de mudar o nome à empresa. Chama-lhe «Final Digno».
2 - O pai do Sr. X morreu de cancro da próstata. Na altura, não se faziam exames regulares. Quando descobriram o que era, já se tinha espalhado, não sem antes lhe causar dores excruciantes, em nada aliviadas pelos medicamentos receitados para as maleitas erradamente diagnosticadas. Saber a verdade trouxe ao Sr. X um estranho alívio e, a partir de então, uma estranha clareza e determinação instalaram-se na sua alma. Foi isso que fez com que aguentasse, sem uma lágrima, ver o pai preso a uma cama enquanto a doença lhe comia, lentamente, como se deliciada, cada orgão, cada função, cada traço do cadáver adiado que fora, outrora, o seu pai. Um corpo dobrado de dores, sem memória nem expectativa de futuro, preso sem mercê a um presente composto inteiramente por sofrimento sem sentido. Quando uma enfermeira lhe respondeu, com «vai já» e um encolher de ombros, seguidos de um murmurar que ele não conseguiu, ou não quis, entender, ao seu pedido de que mudassem as fraldas ao pai, um observador atento teria visto infiltrar-se no semblante do Sr. X uma semente de raiva. O pai do Sr. X morreu num dia quente de Verão, agarrando-se como um animal à respiração que teimava em seguir pelos pulmões afogados, ao mundo que os seus olhos já não viam, gritando pela vida com a voz que já não tinha. O Sr. X agarrava uma almofada com tanta força que abriu os pulsos. Foi ao funeral do pai com eles ligados, como um adolescente sucida tardio. Andou uns tempos sem eira nem beira. Bebia. Quando lhe chegou a pequena herança do pai, despediu-se da repartição e abriu uma empresa. Faz mudanças: da vida para a morte. Do sofrimento para o alívio. Chamam-no de lares, normalmente os donos, que sabem o que custa uma doença prolongada (custa mais do que rende). Às vezes vai a hospitais, alguns médicos com casos mais bicudos chamam-no para fazer o trabalho que não podem fazer. Raramente, são as próprias famílias que o chamam, perdidos numa névoa de confusão e cansaço. Já lhe aconteceu ter homens de 50 anos perguntar-lhe, com a voz trémula de uma criança: «morreu?» Então, o Sr. X entrega-lhes a sua discreta factura, com o cabeçalho que diz «Final Digno».
Céus, há uma infinidade de coisas que o Sr. X podia ser e que a Final Digno podia fazer! As possibilidades são ilimitadas. Mas, como disse acima, ainda não tinha tomado café e tinha de ir trabalhar.