terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Pela Fresca


Há coisas com que a pessoa não merece apanhar logo de manhã. É verdade que eu não me levanto com as galinhas nem com qualquer espécie de ave, que o único trânsito que apanho de manhã é a velhinha da esquina a ir deitar fora o lixo e que as minhas tarefas, antes de ir trabalhar, são não me esquecer de usar amaciador, passear a cadela e não deixar as chaves de casa na porta. Mas ainda assim, gosto de imaginar que, momentos, antes de me levantar, uma manada de assistentes está a correr pelo mundo a gritar uns aos outros: «ela está quase a acordar! mudem-me a cor desse céu! Menos luz, mais nuvens! Quem é que mandou haver vento? Porcaria de estagiários! Tirem esse carro daí, que ela ainda se magoa!» e outras coisas assim. Não é tanto um Truman Show como um Diabo Veste Prada: gosto de me imaginar como uma pequena Miranda Priestley a entrar no meu dia como ela entra pela Vogue adentro. Por isso é que, quando acordo, a primeira coisa que digo é «get me Patrick!».

E contudo, esta manhã, caminhando pacíficamente com a minha cadela, deparei-me com este magnífico anúncio. Primeiro pensei que o software mental que uso para ler antes de tomar café tinha apanhado um vírus, mas depois arranquei o dito para ter provas concretas. Caso a fotografia esteja pouco legível, o que diz é:

«Final Digno. Mudanças para Todo País e Estrangeiro.»

Vamos imaginar quem é o Sr. X, dono da Final Digno, e que acontecimentos na sua vida o levaram a adoptar este nome para o seu respeitável negócio.

1 - O Sr. X é casado e feliz. A Sr.ª X é uma mulher trabalhadora, ainda atraente, mãe extremosa e amiga dos seus amigos. São casados há 17 anos, amam-se e respeitam-se, os filhos têm boas notas e não se dão com más companhias. O ano passado foram à Eurodisney. Contudo, pouco a pouco, a Sr.ª X começa a dar sinais de impaciência. O Sr. X ronca, sorve a sopa, passa as sextas-feiras à noite nos copos com os amigos e, ultimamente, só lhe responde mal. Nunca repara quando ela compra um vestido novo e no outro dia disse-lhe que se calhar ela devia ir para um ginásio «que lhe fazia bem». Vão sempre jantar a casa dos pais dele, mas se a mãe dela os vem visitar, é um ai-Jesus! Não é que o Sr. X esteja muito mais satisfeito com a situação. Ultimamente, tem trabalhado até cada vez mais tarde, os fins-de-semana são uma seca, ela implica com ele por tudo e por nada e nunca lhe apetece. A certa altura, cada vez que o Sr. X diz alguma coisa, a Sr.ª X só ouve um som como de unhas a arranhar um quadro de ardósia. E ao ouvir o suspiro da Sr.ª X, quando acaba de lavar a loiça, o Sr. X tem de se conter para não lhe dar um murro nas trombas. Um dia, estão os miúdos fora, olham um para o outro, ao jantar, à mesa da cozinha, e percebem: acabou tudo. Sem alarido, falam com os filhos, com a família, com os advogados. Ela fica com a casa, ele vai ficar com o irmão até arranjar outra coisa. Quando vão assinar os papéis do divórcio, ela acosta-o, à saída. Sem uma palvra, toca-lhe no braço e deixa-lhe na mão um botão de casaco. Um botão de uniforme da Marinha; era o que lhe tinha caído do casaco, na noite em que fizeram amor pela primeira vez. Ela perguntara-lhe: «vais ter sarilhos por causa disto?» e ele respondera: «valeu a pena.» Por causa da partilha de bens, ele tem de mudar o nome à empresa. Chama-lhe «Final Digno».


2 - O pai do Sr. X morreu de cancro da próstata. Na altura, não se faziam exames regulares. Quando descobriram o que era, já se tinha espalhado, não sem antes lhe causar dores excruciantes, em nada aliviadas pelos medicamentos receitados para as maleitas erradamente diagnosticadas. Saber a verdade trouxe ao Sr. X um estranho alívio e, a partir de então, uma estranha clareza e determinação instalaram-se na sua alma. Foi isso que fez com que aguentasse, sem uma lágrima, ver o pai preso a uma cama enquanto a doença lhe comia, lentamente, como se deliciada, cada orgão, cada função, cada traço do cadáver adiado que fora, outrora, o seu pai. Um corpo dobrado de dores, sem memória nem expectativa de futuro, preso sem mercê a um presente composto inteiramente por sofrimento sem sentido. Quando uma enfermeira lhe respondeu, com «vai já» e um encolher de ombros, seguidos de um murmurar que ele não conseguiu, ou não quis, entender, ao seu pedido de que mudassem as fraldas ao pai, um observador atento teria visto infiltrar-se no semblante do Sr. X uma semente de raiva. O pai do Sr. X morreu num dia quente de Verão, agarrando-se como um animal à respiração que teimava em seguir pelos pulmões afogados, ao mundo que os seus olhos já não viam, gritando pela vida com a voz que já não tinha. O Sr. X agarrava uma almofada com tanta força que abriu os pulsos. Foi ao funeral do pai com eles ligados, como um adolescente sucida tardio. Andou uns tempos sem eira nem beira. Bebia. Quando lhe chegou a pequena herança do pai, despediu-se da repartição e abriu uma empresa. Faz mudanças: da vida para a morte. Do sofrimento para o alívio. Chamam-no de lares, normalmente os donos, que sabem o que custa uma doença prolongada (custa mais do que rende). Às vezes vai a hospitais, alguns médicos com casos mais bicudos chamam-no para fazer o trabalho que não podem fazer. Raramente, são as próprias famílias que o chamam, perdidos numa névoa de confusão e cansaço. Já lhe aconteceu ter homens de 50 anos perguntar-lhe, com a voz trémula de uma criança: «morreu?» Então, o Sr. X entrega-lhes a sua discreta factura, com o cabeçalho que diz «Final Digno».


Céus, há uma infinidade de coisas que o Sr. X podia ser e que a Final Digno podia fazer! As possibilidades são ilimitadas. Mas, como disse acima, ainda não tinha tomado café e tinha de ir trabalhar.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

O Lixão Laranja


Os bibliofagos têm uma vantagem sobre os outros gourmets: o seu deleite de eleição pode não ser fresco. Enquanto que um apreciador de bom vinho ou boa comida raramente bebe um merlot de segunda mão ou come um boeuf de veau usado e meio gasto, um devorador de livros que se preze fica com ligeira taquicardia ao passar por uma loja de livros em segunda mão.


Há puristas que não podem ver um livro com a «espinha» vincada, pois os há, mas também há quem não goste de ouvir o Glen Gould a tocar as Variações Goldberg, o que significa que há gente para tudo e tudo para toda a gente. O mundo, nesse aspecto, é muito parecido com a Worten. Para mim, não há maior deleite que apanhar um livro usado mas bem usado: sublinhado, vincado, com bilhete de comboio a fazer de marcador, com dedicatória e data. Com sinal de uma vida anterior, com história. Como diz o Terry Pratchett: «The story doesn't unveil, it weaves». E nada tece mais a narrativa de um livro do que a história de quem leu o livro antes. É como uma sobrecapa biográfica, uma camada de vida. Os livros são marcas nas nossas vidas; aquilo que lemos a dado momento é um testemunho de quem somos então. E o facto de os descartarmos significa, de alguma forma, que queremos deixar de o ser. Deitar fora um livro é como apagar uma tatuagem, mas sem enxertos nem cicatrizes.


Por isso foi com muito gosto que li esta peça no New York Times sobre a compra de livros na mítica livraria Strand:



Pode parecer estranho que uma bibliofaga não se choque com uma cultura onde é aceitável deitar fora livros - mesmo paperbacks. Mas o facto de se deitarem fora, como o artigo explica, só aumenta a sua reciclabilidade. O lixo de uns é o sustento de outros, o negócio de outros e o entretenimento de outros ainda. Esta frase serve, ao mesmo tempo, de condenação marxista e de elogio do neoliberalismo. Por um lado, a pequena burguesia (e os intelectuais) - ou, pior ainda, a gauche caviar, os limousine leftists - compram livros baratos porque o lumpenproletariat se vê forçado a remexer no lixo, qual rato de livraria (literalmente) para lhes fornecer entretenimento barato. Visto assim, o Pequeno Livro Vermelho parece não só uma boa ideia, como também um imperativo histórico. Por outro lado, o facto de uns verem no lixo uma oportunidade é um exemplo acabado do valor da meritocracia; pessoas que, por razões várias (que podem ser desde o alcoolismo até à fraude dos executivos da Enron - ou ambas), se encontram com menor liquidez financeira, enchem-se de empreendedorismo e montam um pequeno negócio. É a terra da oportunidade, onde nada se perde e tudo se revende. Elbow grease com um bocado de tinta e alguns cortes de papel.


Seja como fôr, resulta em livros baratos, possivelmente com dedicatórias embaraçosas de uma mulher ao agora ex-marido, passagens sublinhadas por alguém que já encontrou outra filosofia de vida e páginas marcadas com recibos de refeições há muito digeridas.


It's all good.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Striping the Velvet


Uma repórter do New York Times esteve na Indonésia e tirou, entre outras, esta foto. Era a cobertura de um... evento que tem lugar na Primavera. Podem lê-la em




A bebé desta foto tinha cerca de 9 meses na altura e tinha acabado de ser excisada. A excisão, como as interpretações do Corão, varia, mas envolve sempre cortar o clitóris e resulta sempre em problemas crónicos de saúde. Para não falar de uma vida inteira sem prazer sexual.


Detesto toda a forma de panfletarismo, raciocínios de primeira figura e slogans aplicados à política. Defendo arduamente a diversidade cultural e a liberdade religiosa. E sei que é ingénuo fingir que o Homem não é o lobo do Homem e que a história da humanidade não está manchada de sangue.


Mas... em bom português, até a mim me doeu!

domingo, 13 de janeiro de 2008

Não Tem Mais Pequeno?


No fundo do nosso armário psíquico, por trás da incerteza sexual, das neuroses da estação passada e das fobias mais berrantes, todos nós temos vícios inexplicáveis. Prazeres secretos e bizarros que existem desde que a humanidade é humanidade. Quando o fogo foi inventado, a par de exclamações como «a comida sabe melhor depois de passar por isto» e «isto dentro das cavernas sabe bem», ouviu-se certamente o grunhido de prazer do primeiro fetichista do fogo. Esta foi uma das razões que levou Freud, visionário como era, a colocar a sua cadeira de psicanalista por trás do divã. Dizia ele que era o mesmo princípio do confessionário católico: sem ver a cara do interlucotor, a pessoa sentir-se-ia mais desinibida. Mas este era o mesmo homem que via símbolos fálicos em tudo, embora fosse viciado em charutos (charutos grossos e grandes), e cunhou a famosa frase «às vezes um charuto é só um charuto» - ou seja, nem sempre era dado à veracidade. E a verdadeira razão para se sentar atrás dos pacientes e fora do seu ângulo de visão era para poder fazer caretas de nojo ou rir-se à vontade.
Um dos meus prazeres secretos é uma coisa chamada Gossip Girl, a nova série dos criadores de The O.C. (outro vício secreto e que em português tem o delicioso título «Na Terra dos Ricos»). É a típica novela de adolescentes que, segundo me dita o anjinho que vive no meu ombro direito, eu tenho demasiada idade, bom gosto e juízo para ver. Em resposta, o diabinho que vive no meu ombro esquerdo só me pisca o olho e lá mergulhamos nós na complexa trama da vida dos milionários de 16 anos, tendo como fundo a impiedosa paisagem do Upper East Side.
Das raras vezes que partilho este segredo com alguém, a reacção costuma ser de choque. Ninguém gosta de admitir que tem uma amiga que vê novelas de adolescentes; é um estigma social pesado. E eu faço pior quando tento justificar este gosto, o que me leva a explicar o complicado enredo, a descrever o guarda-roupa e a exaltar, entre suspiros, as larocas carinhas - e corpinhos - dos protagonistas (estes produtores têm por hábito usar, para os papéis principais, umas blonde bombshells que elevam o beicinho a uma arte; Mischa Barton e delícias semelhantes). É nessa altura que o meu interlucotor se começa a afastar, sem fazer movimentos bruscos para não me assustar, tendo-me arquivado, na sua mente, como «louca mansa mas dada a surtos ocasionais».
Mas, como todos os cães têm o seu dia, a Gossip Girl tem um pormenor que me permite redimir-me socialmente: é a tosta de queijo que vos apresento na foto. Chama-se «Gilt Grilled Cheese Sanwich» e é confeccionada pelo chef Chris Lee, do restaurante Gilt. Este restaurante fica no New York Palace, o hotel onde, na série,vive o mau da fita, Chuck Bass. A tosta foi actriz convidada de um episódio de culto e popularizou-se a partir daí.
Como podem ver (http://nymag.com/daily/food/2007/12/gilts_gossip_girl_grilled_cheese.html)
esta não é nenhuma tosta de pão bimbo com queijo do dia e banha de porco. É feita com pão artesanal, queijo fontina e trufas pretas por dentro, raspas de trufa branca por cima, e servida com batatas fritas regadas com azeite de trufas e salada de rúcula. Custa 50 dólares e o chef garante que só a faz por piada, porque até perde dinheiro com ela a esse preço.
Qualquer pessoa que aprecie a arte da extravagância ou queira fazer uma nota de rodapé engraçada num ensaio de Sociologia verá a delícia conceptual que é esta tosta. Pegar num snack de pobres e enchê-lo de ingredientes caríssimos é, de alguma forma, uma expressão culinária do sonho americano. Só numa meritocracia sem classes estanques é que poderia existir este fenómeno: ricos ou pobres comem o mesmo, os ingredientes é que podem ser mais caros ou mais baratos. É novo-riquismo, mas em bom. É arrivismo, mas da variedade dos Astors e Vanderbilts - o arrivismo que casa bem e caça títulos. É ostentação, mas não é para amadores. É, basicamente, o que faz a geração a seguir àquela que fez dinheiro: comer dinheiro.
E deve saber tão bem...