sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

O Lixão Laranja


Os bibliofagos têm uma vantagem sobre os outros gourmets: o seu deleite de eleição pode não ser fresco. Enquanto que um apreciador de bom vinho ou boa comida raramente bebe um merlot de segunda mão ou come um boeuf de veau usado e meio gasto, um devorador de livros que se preze fica com ligeira taquicardia ao passar por uma loja de livros em segunda mão.


Há puristas que não podem ver um livro com a «espinha» vincada, pois os há, mas também há quem não goste de ouvir o Glen Gould a tocar as Variações Goldberg, o que significa que há gente para tudo e tudo para toda a gente. O mundo, nesse aspecto, é muito parecido com a Worten. Para mim, não há maior deleite que apanhar um livro usado mas bem usado: sublinhado, vincado, com bilhete de comboio a fazer de marcador, com dedicatória e data. Com sinal de uma vida anterior, com história. Como diz o Terry Pratchett: «The story doesn't unveil, it weaves». E nada tece mais a narrativa de um livro do que a história de quem leu o livro antes. É como uma sobrecapa biográfica, uma camada de vida. Os livros são marcas nas nossas vidas; aquilo que lemos a dado momento é um testemunho de quem somos então. E o facto de os descartarmos significa, de alguma forma, que queremos deixar de o ser. Deitar fora um livro é como apagar uma tatuagem, mas sem enxertos nem cicatrizes.


Por isso foi com muito gosto que li esta peça no New York Times sobre a compra de livros na mítica livraria Strand:



Pode parecer estranho que uma bibliofaga não se choque com uma cultura onde é aceitável deitar fora livros - mesmo paperbacks. Mas o facto de se deitarem fora, como o artigo explica, só aumenta a sua reciclabilidade. O lixo de uns é o sustento de outros, o negócio de outros e o entretenimento de outros ainda. Esta frase serve, ao mesmo tempo, de condenação marxista e de elogio do neoliberalismo. Por um lado, a pequena burguesia (e os intelectuais) - ou, pior ainda, a gauche caviar, os limousine leftists - compram livros baratos porque o lumpenproletariat se vê forçado a remexer no lixo, qual rato de livraria (literalmente) para lhes fornecer entretenimento barato. Visto assim, o Pequeno Livro Vermelho parece não só uma boa ideia, como também um imperativo histórico. Por outro lado, o facto de uns verem no lixo uma oportunidade é um exemplo acabado do valor da meritocracia; pessoas que, por razões várias (que podem ser desde o alcoolismo até à fraude dos executivos da Enron - ou ambas), se encontram com menor liquidez financeira, enchem-se de empreendedorismo e montam um pequeno negócio. É a terra da oportunidade, onde nada se perde e tudo se revende. Elbow grease com um bocado de tinta e alguns cortes de papel.


Seja como fôr, resulta em livros baratos, possivelmente com dedicatórias embaraçosas de uma mulher ao agora ex-marido, passagens sublinhadas por alguém que já encontrou outra filosofia de vida e páginas marcadas com recibos de refeições há muito digeridas.


It's all good.

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