Isto porque: estava há tempos a discutir - não era bem uma discussão, era um animado câmbio de pontos de vista concordantes; estava a concordar com veemência, pronto - com um amigo acerca do ultrajante peso da direita católica na oposição ao casamento gay, e lembrei-me deste anti-slogan, cujo sentido é mais ou menos este: o que é preciso, em qualquer tempo mas sobretudo neste de crise, é empreendedorismo sem qualquer interferência na vida privada dos cidadãos, num estado que garanta a todos plenos direitos. E mais uma data de coisas foram ditas, mas, para parafrasear e ao mesmo tempo pedir desculpa a Martin Lutrher King, estou farta de lutar por algo que me pertence por direito, por isso não vou falar do casamento gay nem de todas as coisas brilhantes que eu e este meu amigo dissemos a respeito. Fica só o slogan.
Que vem a propósito de, também: uma instância de como às vezes temos de lutar por aquilo que nos pertence por direito, ou, dito de outra forma, há cada vez mais gente com uma grande lata. Há dias fui com a minha mãe à Perfumes e Companhia porque queria comprar um esfoliante da Clinique. Estou a citar as marcas todas na esperança de as envergonhar um bocadinho. A menina que lá trabalhava explicou-me como tratar das minhas necessidades básicas de hidratação (o que dava uma belíssima fala para um filme porno, mas não foi o caso) e depois incitou-me, incentivou-me, evangelizou-me a usar um determinado hidratante. Quando peguei no frasco do mesmo, ela suspirou e disse: "Pronto. E agora, os olhos?" Por momentos pensei que fosse uma referência edipiana obscura, por isso perguntei qualquer coisa como "quais olhos?". Os meus, explicou ela, o que é que eu fazia por eles? Enchê-los de boa televisão, bom cinema e literatura, aparentemente, não chega. Havia que cuidar do chamado "contorno dos olhos" (cuidar do contorno do olho também era uma boa fala para um filme porno). Disse-lhe educadamente que não queria mais creme, obrigada. Estava a conter-me, na verdade, porque sou da opinião que a imposição de cosméticos, com base na infusão de uma profunda insegurança, ao sexo feminino, através dos media e da publiciudade, en masse, é um dos motores da economia mundial, e que nunca haverá uma verdadeira crise financeira enquanto as mulheres, que ainda ganham, em média, menos que o homens, gastarem grande parte do seu rendimento em cremes manufacturados para melhorar defeitos imaginários em partes do corpo anatomicamente irrelevantes, a não ser que se esteja sob a luz crua dos holofotes de um cover shoot da Vogue, o que, admitamos, acontece a poucas de nós. Para não usar todos estes advérbios com a menina, que me parecia algo impaciente, fui só repetindo um educado "ah não, deixe lá estar", o que pareceu enfurecê-la ainda mais. A sua insistência foi fazendo um crescendo digno de Brahms, até culminar num arrasador: "é que se não fizer nada, daqui a uns anos está como ela", apontando para a minha mãe.
Ora, a minha mãe é uma aficcionada de programas de vida selvagem, e tem um conhecimento enciclopédico de formas de matar, esfolar, mutilar, devorar, encastrar, estropiar, caçar e em geral causar o fim da vida por predação. E também o sabe aplicar à vida mais selvagem que ocorre fora das savanas, oceanos e florestas. Mas neste momento preferiu usar a estratégia consagrada por alguns predadores mais selectivos: fingir que não ouviu. Eu, que ainda não "acabei como ela", fui menos esperta, e ouvi.
Admito-o: não sei muito de marketing e desconheço se a eficácia da fórmula "insulte a mãe do cliente" tem mesmo contrapartidas comerciais eficazes. Estou a lembrar-me, por exemplo, da famosa campanha "beba Coca-Cola, seu filho da puta", e da sua rival, "a puta da tua mãe bebe Coca-Cola; pede Pepsi". E quem não se lembra do nosso nostálgico: "tal como a tua mãe roda lá pela rua, a pasta medicinal Couto anda na boca de toda a gente". Mas não sei, comigo não resultou. Saí e levei só o esfoliante original, o que já foi uma vitória parcial para a sociedade patriarcal. Mas fiquei a pensar.
A lata em geral não devia prescrever. Lembrei-me, nas horas e dias imediatamente a seguir, de inúmeras respostas satíricas e devastadoras. Serei privada da satisfação que me dariam só por o timing não estar do meu lado? Devia-me ser permitido, por exemplo, seguir esta menina na rua e lançar-lhe farpas em resposta à pergunta que me fez, começando pelo mais pobre "e a alternativa é acabar como a menina, com os olhos maquilhados como se fosse um guaxinim?" e indo até ao sofisticado, se bem que hermético, "sabe qual é a vitória de uma gata em telhado de zinco quente?" (que ficaria bem seguido de um belo bitch-slap).
Enfim, isto para dizer que o senhor da fotografia é o Harvey Milk, não o Zero Mostel, e que às vezes é difícil manter a boa disposição quando se está a lutar por algo que nos pertence por direito.