O que pensei hoje ao acordar foi algo como o "e strano" da Traviatta. Acordei ao som de um cão a ladrar e com a luz cinzenta de um dia de chuva a entrar pela janela. Nada de invulgar, mas achei curioso que num país como Portugal, conhecido pelo "sea-sun-and-sand" e pelos maus-tratos a animais, chova tanto e se ouçam tantos cães a ladrar. É um daqueles jeitos de Portugal que são os estrangeiros que tanta vezes mais apanham. Por exemplo, nunca tinha reparado no quanto venta neste país até o ver mencionado como marca saudosa do país numa peça escrita por uma ex-pat americana .
Em sequência quase imediata lembrei-me dos títulos de dois livros. Sempre Llums a Lisboa, um romance de uma catalã, de que conheço apenas o título e a cativante capa (que é a rua do, ai, aquela que sobe dali quem vem da baixa e sobe para o largo das belas artes, ai, aquela que é muito íngreme e passa um eléctrico - que indicação tão precisa, não é? Bom, já vejo). Acho piada à paixão irresistível, como uma atracção quase astronómica, que os catalães têm por Lisboa. Os catalães são como traças e Lisboa um candeeiro. Eles são como coelhinhos e Lisboa uma pick-up de máximos ligados. O que é simpático, porque gosto muito de catalães e acho que é mais ou menos como um bom gin, nunca se tem demais em casa.
O título do outro livro é parecido e é quase uma expressão idiomática na minha vida: Era Lisboa e Chovia. O que eu invejo a simplicidade e elegância desta frase. O little black dress dos títulos.
O que me fez lembrar uma coisa que já pensei muitas vezes: do privilégio que é crescer rodeado de livros. A mera presença física de livros tem uma influência pervasiva numa pessoa, mais ou menos como amianto tipográfico que, por uma osmose simples e não rareficada, faz entrar coisas bonitas e interessantes na cabeça das pessoas. No mínimo, ao estar rodeado de livros pode ser-se absolutamente superficial e parecer muito informado, até erudito, mas sempre interessante. Os livros são um acessório que faz pandan com tudo, sobretudo num país de comportamentos tão uniformes como Portugal, um país dominado por best-sellers onde, a dada altura, ume percentagem considerável da população está seguramente a ler um dos livros do top 5. Estar perto de livros permite-nos pelo menos parecer bem e ter algum tema de conversa - mesmo que não se faça ideia que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar, se alguém encontrou o símbolo perdido, se Caim sempre matou Abel, o que é que ela fez no dia em que o esqueceu, ou seja lá o que for que o Rodrigues dos Santos escreveu desta vez.
E mesmo que não seja só para impressionar, deambular por uma estante de livros é uma dasflaneries mais engraçadas que se pode fazer. Naqueles ramos de lombadas encontra-se muitas vezes uma poesia involuntária criada pelo pot-pourri de títulos, texturas e cores. Sobretudo em estado mais ou menos selvagem - livros aos molhos, aos baldes, à mão-cheia, às pilhas em escadas como nalguns alfarrabistas, ou escondidos em segunda fila numa estante, deitados por cima dos outros, ou ainda em carrinhos, como na foto (courtesy de MB) - pode surgir uma espécie de saborosa sopa de letras: rumo ao farol o longo adeus à sombra das jovens em flor o vasto mar de sargaço a mais longa viagem cruzada sem cruz como um ladrão na noite. E isto sem os abrir e sem fazer ideia de quem os escreveu ou qual é a história que contam.
Porque depois, quando se abre aquela porta... à frente de uma estante de livros, somos todos Alice naquele átrio ao fundo da toca do coelho, rodeada de portas e chaves e bolos mágicos. Algumas das pessoas que melhor conheci numa existiram fora do espaço entre capas e às vezes dou por mim a tentar lembrar-me de onde vi determinada coisa, e não foi, como pensava, a caminho do trabalho, mas no final do capítulo 17.
Esta capacidade mágica que os livros têm de nos fazer perder no seu mundo foi a primeira indicação que tive de que os objectos podem ser mais do que aquilo que são, ou significar mais do que aquilo que indicam. Ou, dito de outra forma, que há portas em todo o lado. Os livros são portas, mas quem já ouviu um arquitecto falar incasavelmente sobre a importância de um arco ou um designer rodear, absorto, um candeeiro de cantos improváveis, ou um estudante de filosofia a fazer desenhos na areia para tentar perceber o pardoxo de Russell, sabe que pode haver portas em todo o lado. São infinitas as maneiras de ver o mundo, ainda que o mundo seja finito. E, para os dias de chuva que sempre parecem acontecer em Lisboa, haverá algo mais divertido do que isso?