terça-feira, 20 de novembro de 2007

Damas de Ferro Forjado


Há mais ou menos duas semanas, andava a Hillary um bocadinho à frente nas sondagens (sim, que ela não é mulher para andar alguns passos - ou pontos - atrás de ninguém), quando saiu este artigo no New York Times:





Esclarecimento: a Maureen Dowd é uma colunista muito respeitada e publicitada do Times, quase um estereótipo da «mulher ruiva e inteligente».

No dia seguinte, numa reacção que me fez lembrar o nosso histórico acesso de «o-Saramago-ganhou-o-Nobel-mas-quem-o-merecia-era-o-Lobo-Antunes-que-também-é-um-convencido-mas-ao-menos-nunca-foi-comuna», vários colunistas e opinadores criticavam a menina Dowd. Criticar não é bem a palavra certa; qual será o termo para uma mistura de crítica e ataque pessoal? O verbo «to bitch» existe em portguês? Será «sopeirar»?

Enfim, no dia seguinte muito se sopeirou acerca do artigo «Should Hillary be a Flight Attendant?». O curioso é que os artigos criticavam Maureen Dowd por:

1 - Ser pretensamente feminista (o que significava, dependendo do artigo, ser revolucionária e provavelmente não depilar as axilas e deixar cinza de sutiã por todo o lado, ou então não ser suficientemente feminista e tentar fazer regredir a condição feminina nos EUA uns 50 anos. Mas era sempre por ser ruiva, aposto; as ruivas são notoriamente matreiras);

2 - Usar o humor como facilitismo para uma questão complexa (se bem que as campanhas presidenciais norte-americanas ultimamente têm sido mais paradas que uma tarde de pesca sem isco... e sem lago... e sem peixes);

3 - Jogar «a carta do género».

E esta foi a minha acusação favorita. Para quem não conhece a expressão, «jogar uma carta» significa usar uma parte da sua identidade a seu favor, victimizando-se: «Tu não sabes como é difícil para mim, sendo mulher/ de cor/ gay/estrangeira/ judia/ muçulmana (ok, estes têm razão, é difícil para eles, salam alekhum!)/ deficiente/ pobre/ sportinguista/ do Porto».

Acusar alguém de «jogar uma carta», particularmente a do género, é uma arma retórica fantástica, uma verdadeira faca de dois gumes: pode ser usada por dois adversários em simultâneo para o ataque e para a defesa. Na verdade, como um daqueles paus que se usa no karate. Ou uma matraca. Ou uma faca, de certa forma... Bom, vá, como qualquer arma, tecnicamente, mas a carta do género é a melhor das armas ainda assim porque consegue desviar imediatamente a atenção da questão a ser tratada.

E, neste caso, a questão a ser tratada é, para falar em bom português, a vagina da Senadora Clinton. Não fiquem chocados/as: também estamos a falar do maior orgão que o Senador Obama tem no corpo (a pele). Isto para dizer que ninguém pode fingir que, nestas eleições, a raça e a cor não são factores determinantes. E a forma como cada candidato os usar vai revelar muito acerca da sua inteligência e capacidade de estratégia.

Por isso é que achei interessante que uma mulher (Maureen Dowd, uma das primeiras mulheres a ter uma coluna de opinião no Times) fosse acusada de ter um preconceito injusto ao falar de outra mulher (a Senadora Clinton, a Primeira Dama mais política de sempre e agora a primeira mulher a candidatar-se à presidência nos EUA). Já adivinharam: as críticas eram quase todas dirigidas por... mulheres. É um jogo de espelhos. Ou, neste caso, (vá, tenho de fazer o humor de facilitismo) de espelhinhos de maquilhagem.

Ao ler todos estes artigos, lembrei-me imediatamente daquele velho cliché feminista dos dois pesos e duas medidas. Se um homem no poder é assertivo, é um bom líder; se for uma mulher, é cabra. Os papéis de género, que eu sinceramente julgava estarem em desuso, estão a reaparecer com uma força nova.

E como não há nada que ajude tanto a esclarecer como a relativização e o anacronismo, pensei nas seguintes situações históricas, revistas e com comentários acrescentados (que reflectiriam a tendência da opinião pública):


1 - Mulher das cavernas a inventar o fogo: «Olha, tem a mania que é esperta.»

2 - Moisésa desce do Monte Sinai e lê os Dez Mandamentos: «Mandona! Deve achar que é mais que ás outras, esta!»

3 - Aníbala a descer os Alpes com o seu exército montado em elefantes: «Que coisa, tem sempre de ser o centro das atenções. Acha que é original, não?»

4 - Júlia Césara a ser esfaqueada nas costas por Bruta: «Ai, ela sempre foi muito dada a intruigas, a Bruta. Mas olha que Césara também era uma cabra...»

5 - Marca António deixa Roma para estar com Cleópatro (ou Cleópatra, para o caso, curiosamente, é indiferente): «O que ela quer sei eu...»

6 - Napoleona a coroar-se Imperatriz: «Olha a coisinha, agora acha que governa a Europa! Mas a gente sabemos bem de onde ela vem, a corsa pé-descalça!»

Se não quisermos olhar para a históris fictícia (que, a meu ver, tem sempre mais piada do que a história factual, porque não temos de decorar datas e, na minha imaginação pelo menos, acaba quase sempre num grande número musical com efeitos de luzes e coroas de plumas), podemos olhar para a história dos livros com o mesmo nome e ver os epítetos lançados contra as mulheres que, de facto, ocuparam cargos de poder. Desde Maria Antonieta, que nunca dise «eles que comam bolo», à sua mãe, Maria Teresa de Áustria, que renovou o poder dos Habsburgo, à Rainha Vitória, transformada em ícone de feminilidade, modéstia e valores familiares, até Margaret Thatcher, que disse, sem nunca o dizer «eles que comam bolo» e graças a cuja impopularidade a expressão «dama de ferro» foi restaurada.

Até Hillary Clinton. Que continua à frente nas sondagens.


O que elas querem sei eu.

Talves fose altura de o resto do mundo o começar a perceber, não?




PS - A imagem deste post é uma peça de uma autora muito engraçada, a Anne Taintor. Ela teve uma daquelas ideias comparáveis ao post-it ou ao hula-hoop («you know... for kids!»): pegou em imagens retro e colou-lhes frases irreverentes. Podem ver quase tudo em http://www.annetaintor.com/

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