quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Antioxidante


Quase todos os blogues falam de coisas muito pessoais e, para este não ser excepção, vou falar também de uma parte muito privada do meu corpo: as amígdalas.

As minhas amígdalas são as derradeiras armas de destruição em massa. Já se tornaram resistentes a toda a espécie de remédio, desde spray de amoníaco ao famoso xarope de cenoura como faziam as nossas mamãs. Pouco a pouco, elas estão a descodificar todos os antibióticos existentes à face do planeta e a tornar-se - sem exagero - omnipotentes. Entre os meus delírios de febre de amigdalite, com dores de ouvido que tornam certos actos de Van Gogh perfeitamente compreensíveis, decidi exterminá-las. Primeiro pensei em invadí-las, instituir um governo provisional e usar o aumento de terrorismo civil combinado com tropas mal preparadas para dar cabo delas. Mas depois de a febre baixar, pensei antes em ir a um otorrino, marcar uma operação, arrancá-las (bom, mandar arrancá-las) e fazer uns pendentes com elas, depois de as banhar em prata (ou ouro branco, ainda estou a ponderar). E presto: uma semana de baixa a comer gelados e gaspacho - e adeus ás dores excruciantes e à garganta de sapo.

Partilho isto aqui não porque me dê prazer falar de doenças - embora compreenda e empatize com essa compulsão de velhinha utente da caixa - mas porque Elas decidiram fazer uma última incursão. As minhas amígdalas são uma mutação do HAL, o computador do 2001, Odisseia no Espaço: assim que me sentiram entrar no gabinete do otorrino, disseram: «What are you doing, Dave?» e passaram ao ataque violento. Eis que, dois dias antes do Natal, começaram a inflamar-se e a ameaçar dias, senão mesmo semanas, de dor, desconforto e incapacidade de fumar.

Mas desta vez declarei uma guerra sem tréguas a este terror doméstico do meu corpo. Liguei ao otorrino e pedi-lhe o antibiótico mais forte que ele tivesse. Ele, simpaticamente, acedeu ao meu pedido. O que eu não sabia era que o antibiótico era também, nos seus tempos livres, uma espécie de Xanax para elefantes. Estão a ver aqueles elefantes muito ansiosos, neuróticos até, que vivem de farra, bebem só bebidas brancas e tomam só drogas brancas, vão a todas as afters possíveis, chegam a casa às 5 da tarde com outros elefantes que engataram numa festa, têm sexo voraz com eles, mandam-nos para casa sem pedir o número de telefone e depois precisam de alguma coisa para adormecer até ser horas de abrir a pista? Esses elefantes tomam o mesmo antibiótico que eu.

Por outro lado, a minha amígdalite não é razão para o mundo deixar de celebrar o nascimento de um judeu numa mangedoura. Altura em que o chocolate abunda, em todas as suas gloriosas formas e feitios, e é imoral, talvez até ilegal, não consumir a maior quantidade possível. Para além dos costumeiros bombons, trufas e chocolates em forma de marisco (quem teve essa brilhante ideia, já agora?), estive a devorar uns destes que estão na fotografia: chamam-se macaroons e são a coisa mais barroca, suave e saborosa que se pode fazer com chocolate, excepção feita aos possíveis usos libidinosos do chocolate espalhado pelo corpo, mas não é disso que estamos a falar. Para mim, a par dos Manolos e da Kirsten Dunst, os macaroons foram as estrelas do filme Marie Antoinette, da Sofia Coppola, por isso, já que os outros dois não me são acessíveis, comer uma caixa de macaroons é um prazer incomparável.

Um pedaço de trivia, para vosso entretenimento: o chocolate tem a mesma composição química que a marijuana.

Um Natal passado sob efeito de antibióticos e chocolate é uma experiência que recomendo vivamente. É uma espécie de lobotomia provisória - e às vezes sabe bem dar descanso ao velho lobo frontal, não é?

Boas entradas.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Making Christmas


O mundo divide-se em dois grandes grupos: o das pessoas que dividem o mundo em grandes grupos e o das pessoas que têm mais juizinho.

Outros dois grandes grupos em que o mundo se divide são: o das pessoas que adoram o Natal e o das pessoas que odeiam o Natal.

Como devem imaginar, em ambos os casos sou membro irredutível do primeiro grupo.

Para já, porque todas as pessoas que conheço que odeiam o Natal caem numa das seguintes categorias:

1 - acabaram de passar por uma separação dolorosa e odeiam não só o Natal, como a Primavera, o Verão, o Halloween, as festas de bar aberto, as festas em geral, a noite em geral, o dia, o trabalho, o carro, a casa, a roupa toda que têm e, até ver, tudo menos bebidas brancas e amigos pacientes;

2 - estão só a tentar chegar a casa mas moram ou trabalham ao pé de um centro comercial;

3 - estão só a tentar ir tomar café mas moram ou trabalham na Baixa;

4 - perderam toda a família num incêndio trágico no Natal (isto só acontece em telenovelas ou filmes de Natal, claro, mas convém que conste);

5 - o filho morreu crucificado aos 33 anos e fazia anos no dia 25;

6 - são más, más como vilãos de cartoon: roubam doces a orfãos, atam latas às caudas dos gatinhos, colaboram com regimes totalitários e fumam.

Concedo aos cínicos do Natal, aos pequenos Ebenezers e Grinches da vida, que ser cínico é sempre mais divertido. Quando toda a gente está suar as estopionhas, com um sorriso palerma estampado no rosto, a empreender coisas - seja decorar uma árvore de Natal, rechear um perú, construir uma caravela ou redigir uma Constituição Democrtática, é muito mais giro ficar sentade num confortável canapé, com um cocktail numa mão e um cigarro na outra, a olhar melancolicamente pela janela e a lançar, entre um suspiro e uma baforada de fumo, um «para quê?» carregado de nonchalance e ennui. A nonchalance e o ennui são os derradeiros acessórios, porque ficam bem com qualquer cor e conferem imediatamente uma aura de magnificência perdida a quem os usa.

Tendo dito isto, tenho de acrescentar que os anti-natalistas me fazem muita impressão. Admiro o cinismo em geral, mas o verdadeiro cínico nunca se rebaixa ao ponto de bater no ceguinho. E, meus caros, odiar o Natal é verdadeiramente uma instância de violento espancamento de um invisual.

Diz-se: «O Natal está muito comercial». Como se o Natal fosse os Beatles, os Nirvana ou o Dylan quando começou a tocar guitarra eléctrica. Cita-se o exemplo do Pai Natal ser uma invenção da Coca-Cola e da árvore de Natal ser um instrumento de propaganda vitoriana. E eu que pensava que vivíamos numa cultura assente na busca da realização espiritual. Quer dizer que a sociedade ocidental não é um ermitário de carmelitas? Somos movidos por - horror! - interesses comerciais?

Diz-se: «O Natal é um stresse». Bom, por acaso até concordo. Nem o marquês de Sade conseguiria descrever o acto de passar 2 dias e, por vezes, 3 refeições em família (alargada e nuclear) como «um prazer». Mas sempre é mais agradável que um casamento, um baptizado ou um funeral. As estações de televisão não fazem programação especial para casamentos, baptizados e funerais (pelo menos para aqueles a que eu costumo ir).

Diz-se: «O Natal é deprimente». É verdade que o número de suicídios sobe em flecha no Natal. É verdade que nos leva a ponderar os anos que passaram. É verdade que é uma prova viva do desaparecimento da magia da infância - um pouco como encontrar o capuchinho vermelho num clube de strip (por acaso acho que isso até se consegue arranjar, só não seria O capuchinho vermelho) ou o Peter Pan a cair de bêbedo no no Lugar às Novas. Mas se lamentamos a perda da magia e da inocência é porque,de alguma forma, ainda acreditamos nelas. Não são tão elegantes como o ennui e a nonchalance, são mais como umas luvas velhas de lã cheias de borbotos. Mas são confortáveis e ajudam a passar o frio.

E que mais se pode pedir?

Feliz Natal a todos.



domingo, 2 de dezembro de 2007

Is that a cigarette in your hand or are you just happy to see me?




Lembram-se destes bons velhos tempos?


Pois, eu também não. Tenho como vaga e recôndita memória de infância andar de autocarro em Lisboa e haver uma ou outra pessoa a fumar. Era uma imagem bonita, porque as janelas de autocarro são suficientemente grandes para se poder olhar por elas com melancolia - que é uma coisa que sabe muito bem com o cigarro. Quando comecei a andar de comboio regularmente, ainda havia uns cinzeiros ao lado dos assentos, mas eram já relíquias de outros tempos, pequenos repositórios de metal onde já nem as cinzas do passado se guardavam. E lembro-me, claro, de toda a gente fumar na televisão e no cinema. Na verdade, acho que só nos filmes da Disney e nos programas infantis é que não se fumava (e os apresentadores de programas infantis, céus! Como dizia alguém: não sei se estavam drogados ou se deviam estar drogados).


Aproximam-se tempos difíceis - se é que já não chegaram, ainda não percebi se é neste mês ou em Janeiro que entra em vigor a infame lei de proibição de fumar em espaços públicos. Já tive ocasião de passar algum tempo em lugares onde leis semelhantes se aplicavam. Como não passei muito tempo lá, achava piada. Aquele silêncio constrangedor que se faz à mesa, quando levantam as entradas, e os fumadores começam todos a retorcer as mãos ou a brincar com as pontas da toalha, até que alguém mais corajoso anuncia, timidamente: «desculpem, vou só lá fora fumar um cigarrinho...» - seguido de um coro de três ou quatro vozes: «olha, faço-te companhia». A converseta que se faz com os outros fumadores à porta dos edifícios, os olhares de cumplicidade que se troca.


A imagem acima remete-nos a um tempo mais livre e inocente. Um tempo em que fumar não era sinal de uma idiotice chapada comparável apenas à de tentar arrancar as torradas da torradeira com uma faca, secar o cabelo no duche ou cortar as unhas com uma serra eléctrica. Quando fumar era sinal de requinte. Aliás, basta ver o penteado dela, os brincos, o champanhe, os menus (há-de ser um restaurante para o caro), o relógio dele. A mão dele é a de um homem «moderno e de requintado bom gosto» (vem no anúncio). Bom, por acaso acho que a mão dele sugere mais violência doméstica do que romantismo, mas a estética dos nos 70 também passava muito por aí.


O que este anúncio também evidencia é uma componente subliminar do acto de fumar: a componente sexual. O objectivo de fumar nem sempre foi o de contrair doenças cardiovasculares e morrer lenta e dolorosamente, ter impotência sexual, prejudicar gravemente a saúde dos que nos rodeiam ou obrigar as crianças a respirar o nosso fumo. A dada altura, fumar era sinónimo de maturidade, sobretudo de maturidade sexual. Cada fumador neófito procurava um estilo de fumar que o fizesse parecer mais sexy: desde a maneira de segurar o cigarro à maneira de inalar, todos os gestos eram calculados. E, claro, cada marca associava o fumador a características distintivas. Aliás, sempre achei que os slogans de cada marca de cigarro davam belíssimas frases de engate. Ora vejamos:


1 - Come to where the flavor is (Marlboro).


2 - It's a woman's thing/ You've come a long way, baby (Virginia Slims).


3 - Blow some my way (Chesterfield).


4 - Taste me! Taste me! (Doral).


5 - Come all the way up to Kool (Kool).


6 - So much more to enjoy (Peter Stuyvesant).


7 - A silly millimiter longer (Chesterfield).


8 - Alive with pleasure (Newport).


9 - Light n' sassy (Misty).


10 - We've got the taste that's right, right any time of the day (Viceroy).


11 - It's what's up front that counts (Winston).


12 - Almost as pretty as you are (Eve).


13 - Why don't you pick me up and smoke me sometime (Muriel).


A Camel é a grande vencedora (e não digo isto só por fumar Camel Lights, perdão, azuis, agora não se pode dizer «lights» porque dá a entender que é menos prejudicial, bl-bla-bla):


1 - Slow dow, pleasure up.


2 - It's your taste.


3 - Where a man belongs.


Depois disto, quero ver quem é que se lembra que beijar um fumador é como lamber um cinzeiro!


Quando já não se puder fumar em nenhum recinto fechado, poderemos sempre mandar imprimir t-shirts com estes slogans para atingir o efeito desejado de sex-appeal.


Ou isso ou ir fumar para a rua, se não estiverem temperaturas muito negativas.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

E Esta, Hã?


Regra geral, odeio jornalistas. Com um ódio claro e penetrante como o sol de Inverno, forte e sólido como o lombo de um fox terrier, e inebriante como vodka finlandesa que foi passar umas férias à Rússia para descobrir as suas raízes (ou vice-versa). Odeio jornalistas de várias formas, feitios e media: os repórteres e os seus casacos de cameraman (não houve uma portuguesa que foi ao Iraque e deixou lá as cuecas quando foi raptada?); os comentadores com as suas opiniões absolutamente neutras e inconsequentes, e as suas referências obscuras; os pivots, que nem com um cartaz gigantesco à frente conseguem ler palavras com mais de duas sílabas (num dia bom); os jornalistas da imprensa que não sabem fazer copy. Excepção feita ao pato Donald e ao Peninha, cujas reportagens estelares ilustravam as páginas desse belíssimo ópusculo, A Patada, odeio jornalistas.

Tenho um amigo que via o telejornal de TVI como se fosse uma comédia. Ele tinha razão, visto assim era digno dos mais altos galardões. E tem de se reconhecer, cada país tem o Seinfeld que merece. Miguel Sousa Tavares ou Elaine Benes; Manuela Moura Guedes ou Cosmo Kramer. A partir do momento em que os termos «velhinhos» e «pobrezinhos» começaram a ser aceites em prime time, tudo se tornou possível.

Acho que não estou a ser demasiado violenta. Não é que eu deteste todos os jornalistas. Alguns dos meus melhores amigos são jornalistas, e tenho uma vizinha que tem um filho que é jornalista e ele ata os sapatos sem ajuda e tudo. Mas há uma coisa que me me dá apoplexias sucessivas (e isto tendo em conta que a apoplexia já nem é uma doença reconhecida pela comunidade médica): jornalistas sem rede. Quando estão à espera que um jogador saia de um balneário, que a família da vítima saia da morgue, que uma celebridade saia de um spa ou que um ministro saia de outro spa e começam a fazer tempo... bem, digamos que é nessas alturas que se percebe que a língua portuguesa tem mais muletas que uma centopeia com problemas do ouvido interno que está sempre a tropeçar.

A verdade é que sou menos tolerante (isto chama-se «eufemismo», meninos e meninas) com maus jornalistas porque admiro tanto os bons jornalistas. Muito do que hoje em dia se escreve de genial encontra-se nas páginas de revistas como a Esquire, a New York, a Slade ou a Vanity Fair. E enfim, este desabafo todo era só para mostrar este artigo (em duas partes):




Alguém que diga que ser gordo lhe permite enfrentar o frio com ursine insoupsiance ou que descreva a sensação (que o fumador tão bem conhece) de acordar de uma overdose de fumo como «ter o sabor de gaiola de papagaio na boca», domina, a meu ver, a arte do mot juste.


(Mas não posso deixar de salientar, neste desabafo, que é maravilhoso viver numa sociedade aberta, livre e democrática que permite os desabafos, e de reconhecer o papel que desempenham jornalistas corajosos e dedicados para que todas as sociedades assim o sejam.)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Gotas de Chuva em Rosas e Bigodes em Gatinhos


Embalagens de papel vegetal e luvas de lã quentinhas, Invernos branco e prata que se transformam em Primavera, essas são algumas das minhas coisas favoritas.

Estas são outras:

1 - Jimmy Wales, um dos fundadores/ criadores da Wikipedia e do conceito de Wiki em geral. Não vou fingir que sou letrada no conceito de Wiki ou noutros conceitos relacionados com os admiráveis mundos novos da tecnologia em geral. Mal sei tirar fotografias com o telemóvel, por amor da santa! Mas respeito e admiro pessoas que sejam capazes de fazer uma batelada de dinheiro, e o Sr. Wales é uma delas. A Wikipedia fez mais pela democratização do saber desde... digamos, desde Platão ou a Oprah. De certa forma, é uma metáfora da própria democracia: amplamente usada e abusada, completamente aberta (ao ponto de ser considerada demasiado acessível), muito falível mais ainda a melhor enciclopédia com excepção de todas as outras (que são a pagantes). Agora que penso nisso, também é uma boa metáfora de um dos meus bares preferidos do Bairro Alto. Mas, como num artigo da Wikipedia, estou a divagar e a esquecer-me do essencial. O Sr. Jimmy Wales é uma das minhas coisas favoritas porque disse hoje, numa entrevista ao New York Times:

http://www.nytimes.com/2007/11/18/magazine/18wwln-domains-t.html?adxnnl=1&ref=magazine&adxnnlx=1195427645-Up/Uwsk5rfAdv5JjCadWIQ

duas coisas adoráveis: que ia comprar um Mini Cooper (é quase um fashion statement, e não necessariamente dos bons, nos EUA) e que colecciona livros (toma lá, Kindle da Amazon e e-reader da Sony!). Mas não só colecciona livros, como também cola pequenas tiras na lombada com os números de catalogação-na-origem da Library of Congress e organiza-os asssim - e ainda tem a frontalidade de classificar isso como «ubelievably geeky».
Mas, mas, mas... o mais giro ainda é que não tem registo informático da colecção!
O fundador da Wikipedia tem uma mini-Library-of-Congress em casa mas não se dá ao trabalho de fazer um registo informático deste processo tão «unbelievably geeky»!
Há quem diga que um homem se conhece pelos sapatos que calça, pela gravata que usa, pelo scotch que bebe. Eu acho que uma pessoa se conhece por estas pequenas contradições.

2 -Outra das minhas coisas favoritas chama-se Fred Feinsilber. Conheci-o num vôo de Frankfurt; eu ia em turística, ele vinha retratado num artigo do International Herald Tribune:

http://www.iht.com/articles/2006/10/06/features/melik7.php

A infância dele parece um conto de fadas em que a fada-madrinha má e invejosa ganhou às outras. Nasceu em Bucareste em 1940, filho de judeus russos. O pai foi recrutado à força pelo exército soviético e a família nunca mais o viu. Ele e a mãe escaparam à justa de uma deportação para a Sibéria e acabaram por se instalar em França (via Israel e outra vez Roménia). Aqui a fada-madrinha ressentida parece ter acalmado: o rapaz estudou Engenharia Química, desenvolveu uma coisa/invenção daquelas que os engenheiros desenvolvem e fundou uma empresa que depois teve a sorte de ser comprada pela Dow Chemicals. O rapaz tinha 52 anos e uma data de malas de mão recehadas de notas, como nos filmes.
Talvez por influência da fada-madrinha de mal com a vida, o rapaz tinha um fraco por livros em geral e Camus em particular. Como toda a gente sabe, se Sísifo fosse vivo hoje não estaria a empurrar uma rocha montanha acima, montanha abaixo, mas a fazer uma coisa ainda mais trabalhosa: a coleccionar livros.
Começa então o rapaz a coleccionar edições raríssimas de manifestos de artistas, livros de poemas ilustrados e outras curiosidades elegantes e bem conseguidas. Um manifesto do expressionismo alemão com gravuras de Kandinsky aqui, um livro de poemas de Eluard com desenhos de Picasso ali. Aberto o apetite, vai apanhando um ensaio de Geoffroy com litografias de Toulouse-Lautrec, uma sátira do séc. XV com gravuras de Dürer, uma edição original dos Quatro Livros de Arquitectura de Andrea Palladio.
Composta a colecção, o que é que o rapaz decide fazer? Bom, se foram ao link, já sabem: foi leiloada na Sotheby's de Paris.
E porque é que alguém faria isso?
Diz o rapaz: «Quando se colecciona, começamos por comprar aquilo que nos fascina, Depois aprendemos a subir ao nível do objecto. Quando termina o processo de descoberta, coleccionar torna-se um jogo de poder. É altura de seguir em frente.»
Se houvesse epitáfios em vida, era isto que queria que escrevessem no meu.
Aqui, «coleccionar» é um eufemismo para «viver». Porque a vida pouco mais é do que uma longa colecção de momentos e coisas.

E estas são duas da minhas coisas favoritas, de que me lembro quando o cão morde, a abelha pica, ou me sinto triste.

Damas de Ferro Forjado


Há mais ou menos duas semanas, andava a Hillary um bocadinho à frente nas sondagens (sim, que ela não é mulher para andar alguns passos - ou pontos - atrás de ninguém), quando saiu este artigo no New York Times:





Esclarecimento: a Maureen Dowd é uma colunista muito respeitada e publicitada do Times, quase um estereótipo da «mulher ruiva e inteligente».

No dia seguinte, numa reacção que me fez lembrar o nosso histórico acesso de «o-Saramago-ganhou-o-Nobel-mas-quem-o-merecia-era-o-Lobo-Antunes-que-também-é-um-convencido-mas-ao-menos-nunca-foi-comuna», vários colunistas e opinadores criticavam a menina Dowd. Criticar não é bem a palavra certa; qual será o termo para uma mistura de crítica e ataque pessoal? O verbo «to bitch» existe em portguês? Será «sopeirar»?

Enfim, no dia seguinte muito se sopeirou acerca do artigo «Should Hillary be a Flight Attendant?». O curioso é que os artigos criticavam Maureen Dowd por:

1 - Ser pretensamente feminista (o que significava, dependendo do artigo, ser revolucionária e provavelmente não depilar as axilas e deixar cinza de sutiã por todo o lado, ou então não ser suficientemente feminista e tentar fazer regredir a condição feminina nos EUA uns 50 anos. Mas era sempre por ser ruiva, aposto; as ruivas são notoriamente matreiras);

2 - Usar o humor como facilitismo para uma questão complexa (se bem que as campanhas presidenciais norte-americanas ultimamente têm sido mais paradas que uma tarde de pesca sem isco... e sem lago... e sem peixes);

3 - Jogar «a carta do género».

E esta foi a minha acusação favorita. Para quem não conhece a expressão, «jogar uma carta» significa usar uma parte da sua identidade a seu favor, victimizando-se: «Tu não sabes como é difícil para mim, sendo mulher/ de cor/ gay/estrangeira/ judia/ muçulmana (ok, estes têm razão, é difícil para eles, salam alekhum!)/ deficiente/ pobre/ sportinguista/ do Porto».

Acusar alguém de «jogar uma carta», particularmente a do género, é uma arma retórica fantástica, uma verdadeira faca de dois gumes: pode ser usada por dois adversários em simultâneo para o ataque e para a defesa. Na verdade, como um daqueles paus que se usa no karate. Ou uma matraca. Ou uma faca, de certa forma... Bom, vá, como qualquer arma, tecnicamente, mas a carta do género é a melhor das armas ainda assim porque consegue desviar imediatamente a atenção da questão a ser tratada.

E, neste caso, a questão a ser tratada é, para falar em bom português, a vagina da Senadora Clinton. Não fiquem chocados/as: também estamos a falar do maior orgão que o Senador Obama tem no corpo (a pele). Isto para dizer que ninguém pode fingir que, nestas eleições, a raça e a cor não são factores determinantes. E a forma como cada candidato os usar vai revelar muito acerca da sua inteligência e capacidade de estratégia.

Por isso é que achei interessante que uma mulher (Maureen Dowd, uma das primeiras mulheres a ter uma coluna de opinião no Times) fosse acusada de ter um preconceito injusto ao falar de outra mulher (a Senadora Clinton, a Primeira Dama mais política de sempre e agora a primeira mulher a candidatar-se à presidência nos EUA). Já adivinharam: as críticas eram quase todas dirigidas por... mulheres. É um jogo de espelhos. Ou, neste caso, (vá, tenho de fazer o humor de facilitismo) de espelhinhos de maquilhagem.

Ao ler todos estes artigos, lembrei-me imediatamente daquele velho cliché feminista dos dois pesos e duas medidas. Se um homem no poder é assertivo, é um bom líder; se for uma mulher, é cabra. Os papéis de género, que eu sinceramente julgava estarem em desuso, estão a reaparecer com uma força nova.

E como não há nada que ajude tanto a esclarecer como a relativização e o anacronismo, pensei nas seguintes situações históricas, revistas e com comentários acrescentados (que reflectiriam a tendência da opinião pública):


1 - Mulher das cavernas a inventar o fogo: «Olha, tem a mania que é esperta.»

2 - Moisésa desce do Monte Sinai e lê os Dez Mandamentos: «Mandona! Deve achar que é mais que ás outras, esta!»

3 - Aníbala a descer os Alpes com o seu exército montado em elefantes: «Que coisa, tem sempre de ser o centro das atenções. Acha que é original, não?»

4 - Júlia Césara a ser esfaqueada nas costas por Bruta: «Ai, ela sempre foi muito dada a intruigas, a Bruta. Mas olha que Césara também era uma cabra...»

5 - Marca António deixa Roma para estar com Cleópatro (ou Cleópatra, para o caso, curiosamente, é indiferente): «O que ela quer sei eu...»

6 - Napoleona a coroar-se Imperatriz: «Olha a coisinha, agora acha que governa a Europa! Mas a gente sabemos bem de onde ela vem, a corsa pé-descalça!»

Se não quisermos olhar para a históris fictícia (que, a meu ver, tem sempre mais piada do que a história factual, porque não temos de decorar datas e, na minha imaginação pelo menos, acaba quase sempre num grande número musical com efeitos de luzes e coroas de plumas), podemos olhar para a história dos livros com o mesmo nome e ver os epítetos lançados contra as mulheres que, de facto, ocuparam cargos de poder. Desde Maria Antonieta, que nunca dise «eles que comam bolo», à sua mãe, Maria Teresa de Áustria, que renovou o poder dos Habsburgo, à Rainha Vitória, transformada em ícone de feminilidade, modéstia e valores familiares, até Margaret Thatcher, que disse, sem nunca o dizer «eles que comam bolo» e graças a cuja impopularidade a expressão «dama de ferro» foi restaurada.

Até Hillary Clinton. Que continua à frente nas sondagens.


O que elas querem sei eu.

Talves fose altura de o resto do mundo o começar a perceber, não?




PS - A imagem deste post é uma peça de uma autora muito engraçada, a Anne Taintor. Ela teve uma daquelas ideias comparáveis ao post-it ou ao hula-hoop («you know... for kids!»): pegou em imagens retro e colou-lhes frases irreverentes. Podem ver quase tudo em http://www.annetaintor.com/

domingo, 18 de novembro de 2007

Lime Green Crocs


A revista New York publicou há pouco tempo um artigo acerca dos piores (leia-se, mais pirosos e detestados) sapatos das últimas décadas:

Tinha de passar pelos crocs, claro. Mas o que me parece que o artigo também demonstra é que cada sapato é representativo da sua época. Do pior, do melhor, do mais típico, do que se vê quando se sai à rua. Quer nos faça pensar «ai por amor de deus ainda nem tomei café e já tenho de estar a levar com isto» ou «olha, ficava bem com aquelas calças que lá tenho e que nunca visto» ou «apetece-me TANTO pisar esta gaja», a verdade é que, de um dia para o outro (é sempe de um dia para o outro), eles estão em todo o lado. Nos pés, nas montras, nas revistas, nas conversas e, mais recentemente até, na Oprah. Quer sejam concebidos por ortopedistas ou por designers, tornam os seus criadores ricos e os seus utilizadores sujeitos a toda a espécie de comentários. A progressão deste é mais ou menos a seguine:

«Ah estes é que são os X?»

«No outro dia vi uma gaja a usar X.»

«Poça, agora toda a gente usa X.»

«Comprei uns X. (objecção de ouvinte). Não, por acaso nem são.»

«São X, mas são de imitação.»

Pensado: «Deito fora ou ainda uso?»

Pausa de alguns anos: «Foi nessa noite, foi, e eles até estavam a usar X... bem, X, lembras-te disso?»

A nostalgia tem como banda sonora o som de uma caixa registadora, porque só se gera à volta de coisas típicas que, para se tornarem típicas, foram consumidas em grande escala. Tenho para mim que as vacas/bisontes/ bichos cornudos que o homem primitivo pintava em cavernas eram all the rage da época imediatamente anterior.

E, quer se goste ou não, os crocs são típicos da nossa geração. Alguém comentou uma vez que, quando se fizerem festas dos anos 00, as pessoas vão levar óculos oversize e crocs. E t-shirts da Paris Hilton, porque o «retro» tem destes erros. E vão passar a música do Dartacão, do Verão Azul, e TODA a música que alguma vez foi produzida entre 1979 e 1988. Com destaque para «you were working as a waitress in a cocktail baaaar when I met you...».

À sua humildemente garrida maneira, os crocs captam o élan da nossa geração.

São garridos (mas também os há em tons pastel, para serem usados por aquelas matronas de meia-idade que, agora ao que parece, se inspiram nos filhos para o vestuário);

São de plástico, o que me poderia levar a fazer tantos comentários como os que me surgem quando vejo um Magritte - sobretudo por não serem de plástico mas de uma coisa que alguém agora muito rico inventou e que não é plástico mas cheira e sabe a plástico. Mas fico-me pela ênfase: são DE PLÁSTICO.

São tão obviamente para crianças que ninguém se dá ao trabalho de o negar. O infantil chic é o novo heroin chic.
São confortáveis (sem ficarem a cheirar a cebolada de vinagrete passado umas horas).

Parecem uma coisa completamente nova mas na verdade não passam de sandálias.

No artigo da New York, alguém comentou que os crocs são um sinal do Apocalipse.

A moda deixa de ser moda e passa a ser «moda»; e assume proporções bíblicas.

E isso, atrevo-me a postar, somos nós.

Procura-se Investidores


Procuro investidores para um projecto de lucro assegurado.


É (como agora se diz) assim:


Hoje em dia, com toda a publicidade negativa que o tráfego de mulheres tem recebido, os clientes de casas de passe tendem a sentir-se coibidos de tocar à campainha encarnada. Mas basta um pouco de visão para perceber que há outras formas de satisfazer este nicho de mercado, sem recorrer necessariamente a táticas comerciais como o espancamento, o rapto e a violação en masse.


Imagine-se um homem heterossexual. Tem uma mulher (ou duas) à frente e pode escolher o décor, os instrumentos e a actividade. O que é que a(s) punha a fazer?


Sexo consigo (é muito óbvio);


Sexo uma com a outra (também já está um bocado visto);


Lutas na lama com t-shirts molhadas (implica custos de limpeza elevados);


A passar lingerie/ sapatos (olhe, para isso compre uma revista e não me faça perder tempo).


Mas vasculhe bem o seu imaginário e dê um pontapé à sua capacidade de observação para ver se aranca: qual é a outra coisa que os homens gostam de ver uma mulher fazer, senão mesmo A coisa que faz esvaziar qualquer tasca e virar todas as cabeças masculinas na rua?


Uma mulher a estacionar, claro!


Basta elas ligarem o pisca para eles ficarem logo com um formiguerozinho.


Começam a fazer manobra e é garantido que qualquer homem num raio de cem metros se vai aproximando, cautelosamente, como uma gazela Thompson na savana. Com um brilho de desejo e ansiedade nos olhos.


Esse mesmo brilho que o identifica como um comprador certo.


Imagine-se: um espaço amplo, decorado com gosto e bem pavimentado, dividido em cabinas individuais.


Em cada cabina, filas de carros estacionados, com um espaço vago (quanto mais apertado for o espaço, mais caro fica; a zona VIP é constituída exclusivamente de subidas).


Uma mulher, bem apresentada, de preferência com óculos de sol oversize, unhas de gel, extensões no cabelo e sacos de compra. Opcional: telemóvel enrosaco no ombro. Ao volante de um carro de proporções fálicas.


Cada actuação teria em média três manobras falhadas e alguns «beijinhos» no carro de trás. Várias paragens bruscas e alguns puxões do travão de mão. Mas depende do estilo de performance de cada artista, claro.


Por um custo adicional, o cliente pode ter o seu próprio carro estacionado à frente ou atrás do da artista.


Os adeptos de SM podem ir sentados no lugar do morto.