segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

As Mãezinhas Deles


Sábado. Esse abençoado dia em que até o mais goy dos goyim é um pouco santo, porque imita o Altíssimo no Seu repouso. A pessoa está a fazer uma última ronda de zapping e, enquanto se pergunta se será o décor de Betty Feia que faz com que as piadas de transexuais sejam sempre tão engraçadas nesse programa e conclui que a RTP está a passar o mesmo filme nas matinés de sábado há cinco anos sem que ninguém se queixe, vê uma coisa nova. A pose das mãos diz Oprah, a postura das costas diz Dr. Phil, o olhar diz «fiz a capa da Seventeen mais vezes do que vocês já comeram tremoços». Ela fala, ela acena, ela é a Tyra Banks.

E neste dia em particular a Tyra estava, de voz mansa e olhar doce por baixo de umas pestanas delicadamente maquilhadas, a expôr a intimidade de cinco raparigas. Calças justas, tatuagem um pouco acima do cóccis, raízes pretas e extensões, e base, muita base. O tema do programa podia ser um verso roubado ao Merceneiro: «Não há maior regalo que vida de rapariga»; mas, numa versão menos poética, o tema era mesmo «raparigas promíscuas».

Enquanto as ondas de choque irradiavam pela minha mente, ouvi os testemunhos destas Mariquinhas do Midwest. As espreitadelas furtivas das vizinhas tornam-se um all out glare quando estas raparigas admitiam, com nonchalance (ou só a encolher os ombros) que saíam para estabelecimentos de diversão nocturna acompanhadas de outras raparigas, seduziam homens e tinham sexo com eles. A promiscuidade, aparentemente, consistia em que o faziam repetidamente e com homens diferentes.

Foi mais ou menos quando uma delas disse que uma vez tinha feito amor - perdão, sexo! - numa praia, que o meu microondas mental acabou de cozinhar a informação e fez um sonoro «ping!»

Levantei-me do sofá e dirigi-me para a janela. Como não vi a Fome, a Morte a Peste e o Outro a cavalgar pelos céus, depreendi que este programa não era um dos sinais do Apocalipse. Pausadamente, fui até à cozinha. Vi o meu microondas e uma garrafa de coca-cola. Então, disse para mim mesma, de certeza que não estamos em 1950. Voltei à sala e liguei a CNN, a BBC e a Al Jahzeera (canal de controlo). Nenhuma das estações noticiosas ocidentais tinha crucifixos gigantescos à vista nem citações bíblicas inflamatórias a passar em rodapé. Das três, só a Al Jahzeera pertencia a um estado teocrático. Donde, disse a mim mesma, podemos inferir que a direita extremista ainda não chegou ao poder nos EUA.

Os muitos anos que passei a ler policiais permitiam-me, então, considerar duas explicações possíveis para o sucedido: ou eu tinha enlouquecido de vez, ou o programa estava mesmo a passar, aqui e agora (bom, ali e então). A hipótese a) é sempre mais provável e apetecível, mas também é inconsequente; se eu tivesse mesmo enlouquecido, isso só me afectaria a mim e aos poucos leitores deste blogue, sobre cuja sanidade mental não me cabe comentar. Por isso, enveredei pela hipótese b) e, como boa cidadã laica, socialista e republicana, soltei um chorrilho de asneiras capaz de fazer o capitão Hadock exclamar: «mais, voyons, madame!»

Até ver o episódio do Tyra Banks Show dedicado à redenção de raparigas promíscuas, eu acreditava, a sério que acreditava, que a revolução sexual tinha a) acontecido e b) sido, em geral, uma coisa boa. Como o sufrágio universal, a invenção da internet e a comida chinesa de take-away: tem as suas desvantagens, mas em geral dá jeito. Pensei que o famoso double standard já só existia naqueles países tão machistas que os homens são tão machos que não resistem uns aos outros e são secretamente gay. Pensei que a liberdade sexual significasse que qualquer pessoa pudesse exprimir a sua sexualidade da maneira que quisesse. Pensei que tudo valia entre dois - ou mais - adultos numa situação de consenso. Pensei que «mulheres promíscuas» fossem aquelas que nunca encontram a chave do carro na carteira ou deixam passar o prazo de validade dos iogurtes. Mas a Tyra, com os seus olhos de amêndoa doce, a sua pele aveludada e o seu beicinho mignon, deixou bem claro em que consiste a promiscuidade. Tinhamos como exemplo estas raparigas de calças justas e cabelos pintados, que tinham tido múltiplos parceiros sexuais mas, depois de uma conversa franca, admitiam que o seu comportamento se devia simplesmente a uma falta de amor próprio ou àquele genérico vazio espiritual que leva tantas mulheres a procurar consolo nas compras, no chocolate e no sexo.

Mas antes de chegarem a este insight, as raparigas promíscuas - ou fáceis, também respondem por esse nome - foram expostas a um painel de homens. Não é o que estão a pensar, eu na altura também pensei que o programa fosse dar essa volta, mas não deu. O painel de homens expôs os seus sentimentos acerca de raparigas fáceis. Numa escala de 1 a 10, sendo 10 o respeito e a tolerância e 1 a elevação a ícone gay, os sentimentos deles estavam numa saudável média de 5, sendo 5 a redução a estatuto de objecto sexual. Vivemos numa época em que articular frases, mesmo na sua forma básica de juntar um sujeito e um predicadop por meio de um verbo, tipo... não dá. Ainda assim, duas frases tiveram direito a coro: para quê comprar a vaca quando se tem leite de graça? e «hos don't make housewifes». Ah, e aprendi que uma das maneiras que os homens têm de identificar uma rapariga fácil é o chamado «tramp stamp» que, para quem não sabe, é a tal tatuagem, aparentemente muito usada por raparigas promíscuas, uns centímetros acima do cóccis, muito visível entre o top subido e as calças de cintura baixa.

Como era sábado, dia de descanso, e tinha de sair para tomar café com a minha melhor amiga, dobrei a indignação e guardei-a numa gaveta emocional onde estão arrumadas as minhas revoltas para reciclagem. Foi só quandoa minha amiga me contou, por coincidência, que uma amiga comum lhe tinha telefonado, em lágrimas, porque tinha uma tatuagem no cóccis e agora se sentia «promíscua», que percebi que, por muito bonito que seja o beicinho da menina Banks, as pessoas não são coisas, e nem as coisas nem as pessoas são fáceis. E que se calhar devia haver uma tatuagem qualquer que permitisse identificar as pessoas decentes, tolerantes, compreensivas e compassivas. E que «feminismo», por muito que se quiera e discuta, ainda não é um arcaísmo.

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